Eduardo Sasha baila a “valsa dos quinze anos”

Segue o baile

Guilherme Macedo Prudente
Geraldinos e Arquibaldos
4 min readNov 15, 2019

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07/12/2017

Em verdade, em verdade, vos digo: nessa epopeia chamada história do futebol, houve uma vez, e uma vez apenas, em que todos os rivais foram agrupados pacificamente debaixo do mesmo teto. Como goiano ressabiado, eu desconfiaria do relato, não conhecesse o esmero com que o assunto é tratado pelos sacerdotes da bola, homens devotíssimos que organizam concílios todo domingo, em qualquer espelunca com televisão, e podem facilmente confirmar tal parábola a quem interessar. “Naquele tempo”, dirão, interrogados por algum filisteu de pouca fé, “Deus ordenou a Noé que fizesse uma arca de madeira e juntasse nela um par de cada espécie; e assim ele fez, reunindo de dois em dois esmeraldinos e vilanovenses, atleticanos e cruzeirenses, corintianos e palmeirenses, e até” — pasmem! — “brasileiros e argentinos”. Sim, irmãos e irmãs! Em meio a lobos e cordeiros, eles conviveram em absoluta harmonia por incríveis quarenta dias, naqueles que foram os últimos sem notícia de provocação entre adversários, como se somente dali em diante tivesse vigorado o mandamento particular que a própria Rivalidade, baixando à terra, usurpou das Escrituras: “Onde dois ou mais estiverem reunidos em meu nome, aí eu estarei”.

De lá pra cá, todos os registros documentados, sem exceção, contam (e, ainda se não contassem, já seria de conhecimento público e notório) que a mera coexistência de torcedores rivais no mesmo recinto basta para produzir as mais diversas reações, da alfinetada bem-humorada à combustão espontânea — caso em que devem ser evitados locais com líquidos inflamáveis. Poderia alguém em sã consciência exigir que fosse diferente? Sim, Leitor Apressado, até poderia, mas só depois de instaurar a trégua entre gato e rato, ou convencer o leão das vantagens da dieta macrobiótica, pois aqui tratamos de comportamentos inerentes à natureza de tais seres, sejam feras ou aficionados. A meu ver, porém, semelhante exigência beira o sacrilégio, por tentar igualar um feito irrepetível, só executado uma única vez pela mão divina — aquela mesma que, mais conhecida como la mano de Dios, às vezes se permite inclusive alguma intervenção no futebol.

Mas se não chega a constituir blasfêmia, é no mínimo despropositada a crítica que fizeram certos jornalistas e seus papagaios de plantão (porque tanto maior é a influência dos “formadores de opinião” quanto mais influenciáveis forem seus seguidores) à massiva torcida brasileira, na última rodada das Eliminatórias da Copa do Mundo, a favor da desclassificação da Argentina. E, de fato, ao marcar três gols e garantir a seus compatriotas o bilhete para a Rússia, não é segredo que o Messi nadou, em grande parte, contra a nossa maré, a qual não deixou de lançar marolas de comemoração aqui e acolá, embora com menor ímpeto, pelo insucesso de Buffon e demais italianos, impedidos de postular em 2018 o pentacampeonato mundial. Admito: faz todo o sentido, do ponto de vista do espetáculo, prezar um torneio de nível técnico melhorado pela presença de craques de outros times, mas há que se espernear pela prerrogativa do torcedor de ser uma criatura perfeitamente irracional e emotiva, que não raro coloca, lado a lado às próprias glórias, os vexames do arquirrival. Na impossibilidade de aliar o útil ao agradável, qual de nós preferirá, por puro amor ao esporte, a derrota sofrida com futebol-arte à vitória conquistada na base da retranca (como são, por exemplo, grande parte das finais de Libertadores)?

Aliás, na decisão da competição continental, há poucos dias, não foi outro senão nossa eterna disputa com os porteños o motivo para se perfilarem, junto à torcida original, um exército adicional de gremistas de ocasião vindos de todos os clubes do Brasil. Ou quase todos, claro — certa vez, conheci um torcedor do Internacional, seu Esaú, que jurava nunca na vida ter tomado sorvete napolitano. “Não suporto ver três listras juntas”, dizia. Para seu azar, contudo, o tricolor gaúcho se sagrou campeão das Américas, com méritos e com direito a provocação do Luan, eleito destaque do torneio. Era um grito de desabafo: ano passado, um jogador colorado lançou moda ao celebrar um gol bailando a “valsa dos quinze anos” — e não porque a partida tenha ficado empatada, como nos passos, em um pra cada lado, mas em referência ao longo jejum de títulos do Grêmio.

Isso posto, resta-me agradecer ao Eduardo Sasha por, com um rodopio, ter criado sem suspeitar a imagem definitiva do conceito de “rivalidade”: feito numa dança, duas partes aproximam-se e se encaram, olhos nos olhos, cada qual tentando impor seu ritmo. E o mais fascinante é que tanto os parceiros quanto os adversários completam-se mutuamente; nesse sentido, engana-se quem acha que o arquirrival almeja a extinção de sua contraparte. Tivesse seu Esaú uma lâmpada mágica, desejaria ao Grêmio a pior das infâmias, mas jamais sua dissolução — o infortúnio de um, por comparação, exalta o outro, na mesma medida em que o fim de qualquer dos dois não serve a nenhum. Sem um grande desafiante, todo time corre o risco de apequenar-se e tornar-se avulso, como quem permanece sozinho num baile. Por extensão, quem se deixa levar pelos excessos da paixão de torcer, transpondo as barreiras do respeito, mostra que não entendeu nada da apresentação — erra o compasso. Na contramão disso, o que dizer daquele que prega a imparcialidade fria e recusa o convite de dançar conforme a música do futebol? Em verdade, em verdade, vos digo, como já vos disse Caymmi: bom sujeito não é, ou é ruim da cabeça ou doente do pé.

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Guilherme Macedo Prudente
Geraldinos e Arquibaldos

Arquibaldo. Geminiano de nascença e corintiano por adoção, mas que recusa qualquer tratamento.