Todo dia um 7 a 1 diferente?

Guilherme Macedo Prudente
Geraldinos e Arquibaldos
5 min readNov 21, 2019

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04/04/2018

Vão as águas de março fechando o verão e, enquanto isso, nos grupos de família do WhatsApp, todas as tias que há muitos anos vêm “rindo até 2018”, pouco a pouco, começam a retomar a seriedade necessária a tempos tão graves como estes, que a cada quadriênio fazem coincidir a Copa do Mundo e as eleições presidenciais no Brasil, por uma ironia conjunta dos deuses do futebol e dos deuses gregos da democracia. Mas, politeísmo à parte, reza nossa missa que Deus é brasileiro e assim, conforme nos aferramos a terço e patuá, rogamos aos céus para que Ele, no fim das contas, nos conceda bons resultados em ambos os pleitos — uma tarefa digna de Sua onipotência — ou evite catástrofe em pelo menos um deles, a depender da fé do cristão.

Com efeito, no ano corrente, a sensação de pertencer a tal brasilidade, para o bem e para o mal, quase pode ser sentida no ar, na medida em que há quem não se importe com política e há quem não dê a mínima pra futebol (o que em qualquer caso é lamentável), mas não existe cidadão por estas bandas, o próprio Criador inclusive, que fique indiferente aos dois — e, se vier a existir, ouvi dizer que o meliante perde a nacionalidade. Daí a percepção generalizada de que estes são meses nos quais todos vamos vivendo em estado de permanente expectativa, feito na pausa para reflexão depois de um sermão longo demais ou, melhor ainda, no minuto de silêncio guardado em respeito a nossa recém-finada paz de espírito.

E se até agora não foi dado o pontapé inicial ao jogo eleitoreiro (conquanto o clima na concentração já esteja fervente), mês passado a Seleção Brasileira deu alguns passos em direção à Rússia na forma de duas partidas — apenas amistosas, dirão os apáticos; eu diria que não foram menos do que aperitivos de Copa do Mundo, e justifico: enfrentar o time anfitrião em sua própria casa e vencê-lo, a despeito do frio e da torcida jogando contra, é uma forma tão apropriada de se adaptar ao torneio e ao seu país-sede, que deve ser a definição de “aclimatação” em algum dicionário que se preze. Quanto à peleja contra os alemães, sua condição de primeiro reencontro após os 90 minutos mais traumáticos da história do esporte nacional, por si só, escancarou a importância do bom desempenho e da vitória brasileira em Berlim. Aqueles que, menosprezando o feito, alegaram que do lado oposto estava não uma equipe mista, mas “apenas” o time B da Alemanha — como se este também não fosse um elenco fortíssimo, vencedor da Copa das Confederações sobre o Chile — , geralmente são os mesmos que defendem a titularidade no selecionado germânico de jovens reservas em ascensão, a exemplo de Sané, Draxler e Goretzka. Ainda são os mesmos que não se lembraram de mencionar que jogamos sem o nosso maior craque e ignoraram que era menos relevante testar a Seleção diante de uma ou outra peça individual do que diante do jogo coletivo alemão, atual campeão do mundo, como bem sabemos. Prudência e caldo de galinha, vovó já dizia, nunca fizeram mal a ninguém, mas ostentar pessimismo ferrenho quando há boas razões para otimismo — nem que seja moderado — costuma ser indício de paixão enrustida, e não de cautela.

Para além dessa patrulha do (falso) derrotismo, muito mais intrigante foi o esforço de parcela da nossa imprensa esportiva, às vésperas desse último amistoso, para negar qualquer relação com o eterno Mineiraço! E, entretanto, nas entrevistas coletivas, o tema foi um elefante na sala — esteve presente por trás de cada pergunta inocente feita à comissão técnica, para não dizer que foi a própria razão de escolha do adversário, já que exorcizar esse “fantasminha”, segundo o vocabulário de Tite, consistiria num formidável ganho psicológico para seus comandados.

Pra começo de conversa, não vamos duvidar que, até em campeonato de dominó, qualquer duelo entre Brasil e Alemanha neste milênio, e talvez no próximo, carregará uma referência subentendida, uma reminiscência a ser renovada por força de um decreto absoluto, baixado em plena Belo Horizonte porém com jurisdição universal. É uma marca indelével no futebol pátrio, quer o aceitemos ou não — mas meu ponto é o seguinte: mesmo se houvesse uma pandemia de amnésia ou uma sessão de hipnose coletiva, teríamos o dever cívico de impedir que a famigerada partida fosse esquecida. A derrota ampla, geral e irrestrita, imposta incrivelmente numa semifinal jogada em solo próprio, não deixou margem para dúvida alguma; nosso projeto futebolístico padeceu de uma aniquilação total, que foi sentida, ouso afirmar, pela maioria dos seres vivos do planeta. Acredite quem quiser, mas no momento exato em que Klose desbancou o Ronaldo na artilharia geral dos Mundiais, meu cachorro Querêncio, companheiro de torcida naquele fatídico 08 de julho de 2014 — não sei se assustado com as lamúrias no sofá ou com o desastre na televisão — desembestou porta afora e só foi parar debaixo do primeiro carro que passou na rua. Morreu de 7 a 1, coitado. Pois um placar assim tão aviltante talvez só tenha sido proporcional à imensa arrogância escondida sob as cinco estrelas do uniforme canarinho, que virou as costas ao progresso técnico e tático de outras escolas do esporte, apostando até a última ficha exclusivamente no poder de improviso e decisão do jogador brasileiro. Deu no que deu; mas essa mesma goleada iniciou uma mudança de mentalidade no futebol nacional de maneiras que um simples fracasso em Copa do Mundo não seria capaz de fazer — como, de fato, tampouco fez em 2006 ou 2010.

As gerações que testemunharam o Maracanazo ou sentiram na pele a consternação por ele causada acreditaram, por décadas a fio, que tinham vivenciado a pior vergonha do nosso futebol, mais desoladora inclusive do que a Tragédia do Sarriá, assim apelidada a eliminação da brilhante Seleção Brasileira no Mundial de ’82. Hoje em dia, a ideia de perder em casa uma final de Copa do Mundo, pelo placar de 2 a 1, parece um passeio no parque em comparação ao que foi o Mineiraço, antes do qual todo jogo contra o Uruguai trazia resquícios do longínquo revés de ’50, agora já pouco mencionado. Como, pelo jeito, só podemos esquecer um trauma preexistente pela superveniência de um trauma ainda maior, eis aí, amigo, outro bom motivo para querer ter sempre em mente o ocorrido naquela semifinal em 2014. De minha parte, hei de fazê-lo nem que seja in memoriam ao pobre Querêncio, cujos anos (abreviados) de vida canina equivalem, conforme a sabedoria popular, aos vividos por um ser humano na proporção de 7 pra 1, em mais uma dessas ironias divinas que enumeramos. Perdoai-nos a profanação, ó Pai — um dia descobriremos que Deus, escrevendo certo por linhas tortas como as pernas de Garrincha, acaba por endireitar o destino futebolístico traçado para esta nação, de alegrias tão numerosas quanto são profundas as suas tristezas.

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Guilherme Macedo Prudente
Geraldinos e Arquibaldos

Arquibaldo. Geminiano de nascença e corintiano por adoção, mas que recusa qualquer tratamento.