Entrevista com Manuel Loff

Redação Geringonça Pt-Br
Geringonça Pt-Br
Published in
12 min readJun 29, 2018
Manuel Loff, professor e historiador português

Não se pode deter por motivos políticos representantes do povo. Não se pode e ponto final.”

Manuel Loff é professor Associado na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, e investigador no Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa. Doutor em História e Civilização pelo Instituto Universitário Europeu (Florença)

Em entrevista concedida a Irene Nogueira de Rezende, para a Geringonça Pt-Br, faz uma análise da situação do governo português, governado pela união de esquerdas, chamada de “geringonça”. Fala também da atual crise política do Brasil que considera uma ameaça à democracia.

Como o senhor vê o governo da “Geringonça” no atual momento.

No momento em que estamos a falar, se avolumam divergências. Todos sabemos que este conjunto de acordos à esquerda nem sequer configuram uma aliança global da esquerda, muito menos uma coligação governamental. Não há representação de nenhum partido à esquerda do Partido Socialista (PS) dentro do governo, não há uma assinatura de um acordo global entre os quatro partidos (PS, PCP, BE e PV). É sempre bilateral. São o BE com o PS, o PC com o PS, os Verdes com o PS, não há um acordo entre os quatro. É verdade que há três anos ou dois anos e meio, havia a perspectiva, sobretudo à direita, mas também à esquerda, de um grande ceticismo. Entendia-se que isso podia funcionar, eventualmente, durante um ano, para impedir que a direita voltasse ao poder. A direita tinha perdido as eleições, tinha perdido a maioria absoluta e é isso que conta, em Portugal. É evidente que tinha uma coligação de direita que tinha mais votos que o PS, isoladamente, mas o que contava é que a esquerda no seu conjunto era maioritária. Nós somos um sistema parlamentar, semi presidencial mas parlamentar, e o que conta é a maioria.

Na Europa temos permanentemente a sensação, desde o final dos anos 70, que as grandes conquistas sociais pós Segunda Guerra Mundial estavam perdidas, era uma questão meramente de ritmo, mas estavam perdidas. E agora, em alguns pontos da Europa temos a sensação que isso não é verdade.

Para 2019, os socialistas têm expectativas de obterem uma maioria absoluta no parlamento e essa maioria permiti-lhes prescindir deste acordo, nos termos que está, à esquerda. Na verdade, na ausência de uma tradição de convergências à esquerda, em 40 anos de democracia portuguesa, e num histórico de fosso muito profundo entre o Partido Socialista e a esquerda, essa foi a primeira vez que se tentou atravessar esse fosso e abrir pontes que funcionaram em algumas áreas estratégicas, mas em duas ou três claramente não funciona. Funcionaram naquilo que eu considero uma das maiores conquistas: dar às pessoas, aos mais desfavorecidos, a sensação de que é possível reverter os efeitos deletérios da política econômica neoliberal. Na Europa, temos a sensação, desde o final dos anos 70, que as grandes conquistas sociais pós Segunda Guerra Mundial estavam perdidas. Era uma questão meramente de ritmo, mas estavam perdidas. E agora, em alguns pontos da Europa temos a percepção que não é verdade. Isso se fez através da recuperação dos salários, da correção de alguns aspectos do que foi pior na precarização do trabalho, mas só alguns aspectos. No caso das precariedades no Estado, foram feitas correções significativas e uma parte substancial que foi tentar, do ponto de vista das políticas de prestações sociais, recuperar a perspectiva de solidez da segurança social e das pensões de aposentadoria que sofriam uma campanha alegando serem insustentáveis E ainda reverteram-se algumas privatizações. Uma simbólica reverteu só parcialmente e envolve capitais brasileiros também que é da TAP. A privatização já estava concluída no governo anterior antes de outubro de 2015 e o novo governo reverteu uma parte dela dizendo que o Estado deveria ficar com no mínimo 51% da companhia. Noutro caso travaram-se privatizações no caso dos comboios (ferrovias) e reverteram-se no caso dos transportes urbanos (metrô de Lisboa, do Porto), carris, transporte de ônibus de Lisboa e Porto. Este é o campo das convergências.

A segunda grande área de divergências, que sempre se soube que não haveria acordo, são as políticas europeias.

Há duas grandes áreas onde há divergências: uma trouxe mais novidades para esse acordo da Geringonça, no último mês, que é o campo da legislação laboral (legislação trabalhista). Os socialistas não tinham aceitado negociar alterações de fundo nas reformas laborais, mas admitiam a possibilidade de fazer adaptações no que diz respeito à precariedade, sobretudo no setor público. Agora, pela primeira vez, negociaram naquilo que chamam de Conselho de Concertação Social onde estão representados os sindicatos, as associações patronais e mais ou menos na postura de árbitro. Ao longo desses anos de funcionamento da Geringonça, os acordos de concertação social promovidos pelo Estado, pelo Governo garantiram sempre a assinatura das duas grandes centrais sindicais, uma mais à direita a UGT (União Geral dos Trabalhadores), outra mais à esquerda, maioritária, a CGTP, intersindical. Pela primeira vez, a negociação foi feita priorizando o acordo com o setor patronal e o sindicato maioritário, CGTP, não assinou. O acordo trata aprova uma série de medidas que desagradam e que, na opinião dos sindicatos, aumentam a precariedade e entra em contradição com medidas anteriores que tinham sido aprovadas para criar maior estabilidade no mercado de trabalho.

A segunda grande área de divergências, que sempre se soube que não haveria acordo, são as políticas europeias. Onde não há acordo é na construção da união econômica e monetária europeia e nas consequências que ela tem, do ponto de vista da vigência do euro, e em tudo o que diz respeito a ter que subordinar a política orçamental portuguesa e de todos os países membros da zona do euro à supervisão de Bruxelas. Estes sistemas mantêm-se, não foi alterado. Em segundo lugar é o problema da dívida. Um problema enorme que sempre dividiu a esquerda quando estava na oposição aos governos da direita, nos anos da intervenção estrangeira de 2011–2015, onde os socialistas entendiam que não se devia reestruturar a dívida e, seus parceiros de agora, sempre entenderam que era necessário reestruturá-la e forçar essa reestruturação. O acordo de 2015 nada menciona sob este aspecto.

A batalha do governo neste momento está centrada em reduzir o déficit público anual, mas o problema de uma dívida de 120 a 122% do PIB mantem-se intacta. Não se agrava (e agravou-se sempre com a direita), mas permanece e obriga anualmente a um serviço de juros que absorve uma percentagem enorme de riqueza que poderia ser disponibilizada para investimentos públicos. Um dos grandes argumentos críticos que, ironicamente, até a direita usa contra o governo Antônio Costa é o muito baixo investimento público.

O senhor concorda que o Governo está preparando as negociações para o próximo orçamento no pior clima que a Geringonça já viveu? Tanto o BE como o PC não estão nada animados.

Eu diria que sim. É o pior clima que agora se viveu. Não faço parte de nenhum dos partidos, mas tenho amigos nos quatro, no Bloco, no PC, nos Verdes e no PS. De tudo que sei de quem participou de negociações, este é o ano que está a negociar mais tardiamente o orçamento. No campo da saúde pública, há uma evidente degradação que não é responsabilidade exclusiva desse governo e, como mostram as estatísticas, há uma conquista gradual de espaço da saúde privada, em grande parte à custa dos serviços do Estado e pagamentos que SNS faz aos sistemas privados, o que tem motivado divergências sérias à esquerda. Por exemplo: agora o BE apresentou uma reforma de lei de base do sistema de saúde que os socialistas não votarão.

Em segundo lugar, há um discurso cada vez mais aberto, da parte dos socialistas, que entende que áreas como educação e saúde devem passar por grandes consensos nacionais. O que significa uma negociação entre o maior partido da esquerda e o maior partido da direita, o que na gíria política portuguesa significa o centrão (os grandes acordos entre os socialistas e o PSD). Provavelmente, os socialistas argumentarão que não vale a pena fazer uma reforma que não comprometa o essencial do maior partido da direita. Portanto uma reforma nessas condições não alterará aquilo que nós vimos nos últimos anos que é uma transferência substancial de recursos, e de pessoal, do SNS para o privado.

Seria lógico que os partidos de esquerda rompessem com o PS se as reivindicações não forem atendidas. Mas quem romper este acordo vai pagar eleitoralmente por ele. Acho que os socialistas estão convencidos que se romperem não perdem e, eventualmente, podem até ganhar votos à direita.

A segunda grande área é essa espécie de teimosia do governo na questão dos professores. Falamos de um dos subsetores profissionais mais numerosos e onde, eventualmente, os socialistas têm um grande êxito eleitoral. Na administração de 2009, uma das explicações para ter perdido a maioria absoluta foi esse choque aberto com os professores que agra se reproduz. Os socialistas estiveram de acordo, em 2017, para realizar uma atualização da carreira dos professores, do básico secundário, que contabilizasse, gradualmente, os nove anos que a carreira esteve congelada (perdi 28% dos meus rendimentos). Isso foi inscrito no orçamento de 2018. Entretanto, no Natal passado, o atual ministro das Finanças, Mário Centeno, passou a dirigir o Eurogrupo (conselho dos ministros de Finanças doa países da União Europeia que fazem parte da zona do euro), eu creio que houve uma mudança de atitude e aumentou seu controle na definição de políticas. Tudo indica que não vai querer cumprir o acordo feito no ano passado.

A questão é se podem os partidos de esquerda (que priorizaram a questão dos professores na campanha de 2015) manter seus acordos com o PS. Se os socialistas não cederem, fica muito difícil e a resposta é o orçamento que vai dar. Seria lógico que os partidos de esquerda rompessem com o PS se as reivindicações não forem atendidas. Mas quem romper este acordo vai pagar eleitoralmente por ele. Acho que os socialistas estão convencidos que se romperem não perdem e, eventualmente, podem até ganhar votos à direita. As sondagens (pesquisas) indicam que os socialistas estão a ganhar apoio eleitoral na direção do centro ou da direita, porque têm tido sucesso econômico com sua política e porque tem se beneficiado das desavenças internas do maior partido, o PSD.

No Brasil teve uma espécie de acordo tácito para não pôr em causa o papel dos militares na ditadura e na vida política brasileira. Depois do golpe contra Dilma e a criação deste governo tão frágil, tão ilegítimo recorre-se as forças armadas para simular uma capacidade de exercício de poder efetivo sobre a sociedade.

Em artigo no jornal Público o senhor falou da militarização da justiça no Brasil e sobre o perigo dos militares rondando o governo. Desde a era Vargas, há quase 90 anos, portanto, convivemos com essa aberração. Pode falar um pouco sobre o tema?

A minha interpretação da transição da democrática brasileira é que ela tem as limitações típicas de um sistema autoritário. Ainda por cima, no caso brasileiro, fundamentalmente dirigido pelos militares e corporações militares. Isso significa que o grau de impunidade sobre a natureza política dos crimes de Estado praticados pela ditadura é superior a outros casos, porque no processo da transição a elite autoritária que aceita apear-se do poder, ceder o poder a um conjunto de atores políticos democráticos com os quais negociaram, aceitam com condições e uma dela é, evidentemente, a impunidade. Isso mostra o papel que as forças armadas desempenham no Brasil desde que a democracia foi restaurada. Teve uma espécie de acordo tácito para não pôr em causa o papel dos militares na ditadura e na vida política brasileira. Depois do golpe contra Dilma e a criação deste governo tão frágil, tão ilegítimo, recorre-se às forças armadas para simular uma capacidade de exercício de poder efetivo sobre a sociedade. O famoso twitter do comandante Villas Boas, com uma ameaça muito pouco velada 24 horas antes do julgamento do HC de Lula, o fato de Temer chamar o exército para ocupar o Rio de Janeiro e os comandantes anunciarem abertamente que assumiriam a tarefa, mas o governo se comprometeria a não abrir uma comissão da verdade para o que suceder, tudo isso é muito indicativo daquilo que nós enxergamos como uma transição autoritária. E sabemos como são as transições autoritárias, são sempre graduais do contrário não são transições, são golpes. Vai se criando sucessivos patamares de impunidade. É inadmissível que representantes das forças armadas possam interferir em sentenças ou decisões da justiça ou o exército não estar sujeito a qualquer controle ou verificação da legalidade de seus atos, num momento em que sabemos que há graves violações aos direitos humanos (a execução de Marielle Franco mostra bem isso).

Num momento como o fascismo que o inimigo é tão devastador que é quase obrigatório uma união (das esquerdas) e creio que o Brasil está numa situação muito semelhante. Desde a Constituição de 1988 esta é a situação mais longa e mais grave de crise porque passa a democracia brasileira.

Com seu conhecimento da política brasileira o senhor vislumbra alguma possibilidade de aliança nas eleições de outubro? Qual sua percepção sobre esse cenário?

É muito difícil avaliar, mas eu diria que, na desafortunada tradição das esquerdas, elas têm muito mais dificuldades em aglutinar forças do que do lado das direitas. Só em momentos muito decisivos a esquerda soube fazer alguma aliança: as Frentes Populares contra o fascismo, durante e após a Segunda Guerra Mundial na construção do mundo do pós-guerra. O segundo caso mais emblemático é a Unidade Popular Chilena. Houve momentos que a esquerda demonstrou capacidade de unidade. Num momento como o fascismo que o inimigo é tão devastador que é quase obrigatório uma união e creio que o Brasil está numa situação muito semelhante. Desde a Constituição de 1988, esta é a situação mais longa e mais grave de crise porque passa a democracia brasileira. E nesse sentido por mais dificuldades que existam, eu diria que é prioritário encontrar uma plataforma conjunta, sentar à mesa porque a situação em que se encontra a esquerda brasileira — e a democracia — é bastante excepcional, bastante extrema. E ainda por cima num segundo turno pode a esquerda deparar-se, por hipótese, com dois candidatos como Bolsonaro e PSDB e o melhor seria tentar evitar esse cenário. Situação que os franceses tiveram que passar escolhendo entre Jean Marie Le Pen e Jacques Chirac, entre Marine Le Pen e Manoel Macron, ou seja escolher entre o mal menor, entendendo que esse mal menor pode ser um dos golpistas de Dilma. Imagine a situação de ter que pedir a milhões de eleitores indignados contra o golpe uma solução dessa natureza. Nestas circunstâncias é absolutamente central que as esquerdas brasileiras procurassem uma plataforma conjunta.

Convivemos no Brasil com uma profunda crise econômica, política e social, enfim em todos os níveis. Agora dizem que a persistência de Lula manter-se candidato estaria congelando o processo. O senhor concorda?

Depende do sentido de congelar. Eu tenho ouvido explicações de brasileiros que trabalham comigo que esta é a melhor forma de assegurar um maior número de eleitores que permaneçam mobilizados em torno da injustiça praticada contra Lula. Manter até o último momento e, se não for possível, que o próprio Lula peça a seus eleitores para transferir seu voto para outra opção. Eu tenho dúvidas sobre a eficácia dessa estratégia, porque num momento em que se pode confirmar que o judiciário impeça a candidatura de Lula, a indignação pode gerar profunda desilusão e desmobilização. Pode até haver um boicote: se não é Lula, não é ninguém. Não posso e não devo dar lições à esquerda brasileira, mas esse risco é elevado. Seria bom que a reflexão fosse feita e até obter alguns dados mais objetivos dos eleitores para saber se essa reação pode acontecer ou não.

Se a democracia representa direito sagrado aos direitos adquiridos, a democracia foi posta em causa, no caso brasileiro, de maneira muito evidente. Primeiro: no sistema presidencialista tirar um presidente com um procedimento completamente anômalo e golpista como no caso da Dilma. Em segundo lugar, por tentar impedir qualquer operação política do partido de Dilma, criminalizar Lula, estender a uma parte dos dirigentes do PT a operação Lava a Jato e tentar descartar o principal candidato do PT e o mais popular, por via judicial. Se não podemos evitar que ele se eleja a melhor forma é mantê-lo na cadeia. O cenário configura uma situação excepcional a tal ponto, que abre exceção à vigência da própria constituição e do sistema democrático. Isso deveria empurrar as esquerdas brasileiras para compreensão de que vivemos num estado de exceção e num estado de exceção se pode suspender direitos, manipular a justiça, manipular os processos eleitorais. Não se pode deter por motivos políticos representantes do povo. Não se pode e ponto final.

Manuel Loff (Porto, 1965), Doutor em História e Civilização pelo Instituto Universitário Europeu (Florença), Professor Associado na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, e investigador no Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa. Doutor em História e Civilização pelo Instituto Universitário Europeu (Florença). Investigador em História política, ideológica e social do século XX. No âmbito dos Estudos da Memória, investiga sobre a construção social da memória da opressão ou das experiências da sua superação.

--

--