Criatividade e Pandemia: do caos ao autorrespeito

Karol Ananda
GetNinjas Design

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Há quase 2 anos estamos dentro de um cenário caótico de esgotamento mental e físico tentando manter a sanidade e energia ao carregar uma rotina que não mudou, só se tornou mais pesada e muitas vezes insuportável. Meses de distância, saudade, solidão, angústia, medo e dúvida. E ainda assim, precisamos trabalhar em alta performance.

Esse cenário de extrema dúvida me tirou o eixo, porque mesmo que o mercado publicitário venda a criatividade como algo espontâneo e catártico, criar exige esforço mental, estudo, imersão, análise e segurança. Quem se sente seguro quando está em dúvida? A dúvida que virou gatilho para dias de autossabotagem, autocobrança excessiva e bloqueios que não cessavam mesmo após o descanso.

O culto à hiper-produtividade_

No início da quarentena, acessando qualquer rede social ou durante um papeco com os amigos o assunto central baseava-se em AÇÃO. Aprender um idioma novo, impulsionar projetos, fazer todos os cursos que estavam estacionados, criar um checklist de leitura, iniciar uma rotina mais saudável ou se jogar em um novo hobby.

Descanso passou a ser citado como ócio criativo, esse termo bonito e importante, mas que para muitos (inclusive pra mim 🤡) virou uma forma menos culposa de falar sobre tempo livre e desligamento, afinal na roda o termo amenizava a sensação de descansar por descansar e não descansar para produzir mais.

Ao invés de fazer algo que eu gostava apenas pra relaxar, eu estava lendo diversos livros da área, vendo 300 vídeos sobre a minha profissão, filmes, documentários, cursos de Design, Direção de Arte, Branding e todas as outras várias coisas que me cobrei ser perfeita em plena fase de esgotamento.

Foram diversas sessões de terapia pra perceber que o meu “descanso” virou um job. Eu buscava alternativas que alimentassem minha criatividade o tempo todo. Não que nutrir a criatividade seja negativo (na verdade é necessário!), mas eu usava todos os momentos de desligamento (ler, escrever, ver filmes/séries) como disfarce para consumir mais e mais informação quando eu precisava descansar. Carregar esse look foi se tornando insustentável em meio a exaustão mental que a quarentena me causou.

Brincando com o burnout_

Não, eu não fui diagnosticada com burnout, mas cheguei bem perto. Na quarentena encarei o trabalho e o meu potencial criativo como válvula de escape. Me manter ativa aliviou a autocobrança e ocupou minha mente para que eu não tivesse tempo de sentir a tristeza acumulada que eu não sabia reconhecer.

Privada de direitos básicos como ir e vir, isolada das minhas relações sociais e vivendo a minha profissão dentro de casa, foi automático entender o meu papel no mundo através do meu trabalho e a minha carreira como o meu único caminho de identidade.

Hoje compreendo que essa não é uma escolha consciente. Nenhum assalariado acorda e decide que trabalho é o centro da sua vida porque é super daora. Existem motivos psicológicos, socioculturais e sociais que nos colocam nessa posição e esse foi o único caminho para muitos no cenário pandêmico, no qual vemos um mercado instável, com mais de 13 milhões de desempregados e o índice de instabilidade psíquica como nunca foi visto antes no Brasil.

Por mais que às vezes falemos de Burnout com humor através de tweets e memes, precisamos ter cuidado ao condenar o workaholic ou tratar o burnout de forma leviana, falando da doença como consequência de Não’s e limites que não foram impostos, desconsiderando toda carga emocional por trás disso e principalmente, o privilégio de ter a possibilidade de falar NÃO no cenário atual.

Por muito tempo eu acreditei que o meu descanso existia para nutrir meu potencial criativo e isso foi um dos propulsores do meu esgotamento, mas o mercado também demorou até perceber que cobra por uma produtividade dilacerada e entende a criatividade como um processo desumanizado e robótico, que funciona com um botão de liga/desliga, chegando ao ponto de ignorar os aspectos emocionais que fazem parte do contexto de uma profissional.

Tristeza, cocriação e humanidade_

Aceitar a tristeza durante a pandemia foi, e ainda é, um dos meus maiores desafios. Tenho muita dificuldade em reconhecer esse sentimento e assim me tornei expert em reprimi-lo. Ignorar o desconforto interno, a angústia, o cansaço, o luto e seguir produzindo era mecânico pra mim. Vivi dias insuportáveis em silêncio, entreguei trabalhos maravilhosos passando por um colapso, mas a pandemia me deixou em contato com o mundo como se eu estivesse passando por uma hemorragia interna. Eu precisei buscar ajuda, mais de uma vez.

Com ajuda psicológica, reconheci que a criação de qualquer coisa começa pela humanidade. A condição mais vulnerável e honesta de ser uma pessoa com camadas como todas as outras. O pessimismo, a vergonha, a vontade incontrolável de chorar (daquelas que você sente a garganta doer) e a tristeza fazem parte de quem somos e nos aponta para mais de uma direção, que não apenas seu sentido literal.

Com ajuda de amigos e colegas de trabalho, venho entendendo a importância da cocriação. Me permitir ser ajudada por outras pessoas — confiando no outro, criando e ouvindo o outro sem temer perder o controle — me aproximou do aspecto mais humano do “criar em equipe”. Isso transpõe a garantia de entregas muito mais ricas e projetos melhor elaborados, na verdade essa permissão me trouxe me vínculos genuínos, que me ofereceram um espaço seguro para dias muito bons e dias infernais.

O transcender não existe_

Estamos há 2 anos criando com e para pessoas que passam por toda essa avalanche de sensações e sentimentos diariamente. Pessoas que perderam famílias, amores, que se recuperaram, que vibram no medo, que oscilam emocionalmente, que sentem. Ignorar essa humanidade é criar algo vazio para ninguém.

Não consigo finalizar dizendo que a pandemia tem sido um longo período de lições incríveis que vai nos levar a outro nível espiritual e moral, longe disso. Pra ser sincera, qualquer papo que comece com “o lado bom da pandemia” já me desperta ranço imediato. Penso que a vida seguiu e existir enquanto o jogo continua é um processo vivo com momentos de amadurecimento, mas frequentes etapas falhas também.

Aproveito pra estender a reflexão com alguns podcasts:

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Karol Ananda
GetNinjas Design

Escrevo sobre Criatividade, Branding, Design e como os relaciono com minhas paixões e o cotidiano.