Como a morte do filho fez um roteirista mudar o jeito de contar histórias

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8 min readApr 1, 2015

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Experiente, Jeph Loeb reinventou (e piorou) sua forma de fazer histórias após a morte de seu filho adolescente

Marcos Candido

Em 2005, Sam Loeb faleceu. Vítima de um tumor ósseo, o garoto louro, sem sinal de barba, deixou um roteiro pela metade e o carinho do círculo de roteiristas amigos de seu pai.

Sam era filho de Jeph Loeb, roteirista com passagens por Dark Horse, DC, Marvel. Jeph era conhecido pela escrita rigorosa. De suas mãos saíram Superman — Quatro Estações, Batman: O Longo Dia das Bruxas, entre outras. Suas histórias tornam-se cânones, mesclando alegorias sociais e naturais para demonstrar a deterioração ou o heroísmo de personagens famosos. A partir da década de 90, a estante, outrora vazia, encheu-se de premiações.

Assim que Sam se foi, o pai reuniu um time de roteiristas e desenhistas da indústria de quadrinhos para finalizar um roteiro deixado pelas mãos do filho. Superman/Batman 26, lançado em 2006, é a única história assinada por Sam Loeb. Além de Jeph, o enredo protagonizado por Superboy e Robin conta com a colaboração de Joss Whedon, Geoff Johns, Joe Casey e Paul Levitz e outros premiados. Nos traços, Tim Sale, parceiro de longa data. Na época, Loeb era um dos diretores de SmallVille. A estreia da quinta temporada da série é dedicada ao seu único filho.

Sam é descrito como um garoto bem-humorado, de dentes sempre visíveis em um sorriso acalorado. Com pouca idade, enturmou-se com artistas dos quadrinhos norte-americanos, tornando-se uma espécie de “mascote”.

Mark Millar, criador de Os Supremos e Kick-Ass, declara que Sam era um garoto “hilário” que “devorou o enredo” do primeiro volume de Os Supermos, lançado em 2002. Com escárnio, Sam dizia que a história era boa, mas poderia ser melhorada. O garoto não conheceu o fim do segundo capítulo de Os Supremos, publicado dois anos após sua morte. Millar relembra e diz que o ‘confronto’ do jovem levou o enredo a um novo patamar.

Funcionou. A leitura contemporânea dos Vingadores, criada por Millar e desenhada por Bryan Hitch, reinventou a Marvel. O universo de heróis no no cinema é, grosso modo, Os Supremos. Era natural que, após dois grandes títulos, houvesse uma terceira sequência. Na época, a Marvel relegou a tarefa à Jeph Loeb. Se esperava muito mais. O responsável e experiente roteirista levou a série ao buraco.

Ultimato

Jeph Loeb é um sujeito calvo, de rosto oval, encoberto por uma pele amarelada que o confere um ar de papiro. Dificilmente sorri exibindo os dentes e toma os óculos para assinar autógrafos em convenções.

Quando assumiu Os Supremos 3, em 2012, Loeb já dava sinais do declínio na qualidade de seus roteiros. Diferente do iniciado por Millar, o terceiro volume carrega a arte cartunesca e tosca de Joe Madureira, um enredo non-sense, com reviravoltas mal executadas e tomado de violência gratuita.

Nos fóruns de quadrinhos, a reação foi instantânea. Muitos se queixavam da escolha de roteirista, que já à época se tornara sinônimo de exageros e texto de gosto duvidoso.

Em 2009, Jeph já havia assumido a minissérie Ultimatum. O arco foi eleito como um dos piores da década. No enredo sem muito sentido, a equipe d’Os Supremos combate a trupe de vilões comandas por Magneto. Em meio a treta, ocorre um tsunami que dizima parte dos super-heróis. Em uma das cenas, o mutante Blob, literalmente, mastiga e come a heroína Vespa.

Em 2010, Loeb deu luz ao esdrúxulo Rulk, ou ‘Hulk Vermelho’. O excesso continuava lá. Diferente do seu semelhante verde, o Hulk Vermelho é indestrutível. No início, fazia-se mistério sobre sua real identidade. Com o tempo, foi revelado Rulk era — nada mais, nada menos — do que o general Ross. O mesmo antagonista que, em toda sua trajetória, caçou Hulk.

Além da força infindável, Rulk é flamejante, inteligente e estratégico. Em certa ocasião, o vilão realiza um salto tão, mas tão intenso, que vai parar na Lua (!). Chegando lá, ele cria uma desavença com o onipresente Vigia e o enche de porrada (!!!).

Com as novas empreitadas, surgiu a comparação com o cineasta Michael Bay, conhecido pelo universo esdrúxulo (e grandioso) da franquia de filmes Transformers. Mal sabiam que Jeph tinha muito em comum com Michael Bay: ambos eram sinônimo de boas vendas. A primeira edição de Ultimatum atingiu o topo de vendas no mercado norte-americano. Com o Hulk Vermelho em ação, as vendas de Hulk também aumentaram.

reparem o bigode

Os números eram favoráveis, mas Jeph Loeb mudou.

Quando escreveu Superman — As Quatro Estações, em 1998, Jeph foi premiado pela consistência do roteiro. A história é narrada por personagens relacionados com Superman e Clark Kent. Na Primavera, Jonathan Kent conta o florescer de Clark. No Verão, época mais estável e acalorada do ano, Lois Lane dita o alvorecer de Superman, um extraterrestre disposto a doar seus poderes em prol de estranhos. No Outono, Lex Luthor relata a queda de Superman. No Inverno, Lana Lang, primeira namorada de Clark, mostra como o rapaz simples do Kansas cedeu lugar a uma figura icônica, mas distante de sua origem bucólica.

Talvez, a análise de As Quatro Estações sobre a vida de Superman também se aplique a vida de Jeph Loeb. A sensibilidade cirúrgica e autoral do roteirista, em alguns anos, deu espaço ao blockbuster desenfreado, sinônimo de baixa qualidade entre parcelas do público e de grade parte da crítica especializada.

Depois que Sam Loeb se foi, o inverno chegou.

Câncer

O osteosarcoma é o câncer ósseo mais comum entre crianças e adolescentes. Os ossos mais atingidos são o fêmur, a tíbia (osso de ligação do pé) e o úmero (osso mais longo do braço, responsável por ligar o membro ao resto do corpo). Apesar de mais comum em certas regiões, não há limite para seu crescimento em diversas ossaturas.

Em um Sam Loeb de apenas 14 anos, o osteosarcoma atingiu primeiro a perna. Depois, foi em direção à mandíbula. Por fim, se espalhou por sua caixa torácica. O primeiro sintoma é a dor. Ao longo do tempo, são comuns os inchaços e as fraturas.

O processo quimioterápico sumiu com o cabelo loiro de Sam. Hoje, especialistas acreditam que a quimioterapia já mostra resultados e aumenta a sobrevida dos pacientes. A luta levou três anos. Sam Loeb morreu no dia 17 de junho de 2005, aos 17 anos.

Em homenagem ao filho, Jeph convocou Tim Sale para retomar o universo criado em As Quatro Estações. Em apenas uma página, ele retrata um Clark Kent a ler uma carta deixada por um garoto chamado Sam, também vítima de um câncer.

Em uma transcrição fiel da carta, Jeph narra narra o poema escrito pelo garoto antes de partir. No escrito, está a descrição do presente (“Seu destino não repousa/No leito de um hospital”) e a esperança com o futuro (“Grandes feitos estão por vir”).

Em poucos balões, narra: “Eu gosto de pensar que [manter a carta] foi a forma que Superman encontrou para homenagear Sam, já que o mundo é um pouco menos especial sem ele — sem o garoto que fazia Clark sorrir”.

Após pincelar esta página, Jeph passou um verão sem escrever. O luto acarretou atrasos nos títulos dos quais comandava à época na DC, como Superman/Batman e Supergirl. Sentia muita falta do filho, dizia. Não fazia questão de esconder.

No fim de 2005, assinou com a Marvel. Na nova casa, deu início ao seu novo estilo de escrita criticado — ainda que vendável. Até hoje, ele retoma a memória do filho para criar histórias com alguma inspiração.

Nova

Em 2013, Jeph assumiu o roteiro de Nova — Marvel Now (lançado aqui em Universo Marvel 1). No enredo, o adolescente Sam Alexander ouve histórias contadas em detalhes por seu pai, Jesse Alexander, um antigo patrulheiro dos Nova.

Pode soar bem, mas Jesse não é um bom pai. Ele é relapso, possui problemas com álcool e põe Sam em constrangimentos. Tudo se apaziguava com os contos detalhados antes de dormir, que confortavam o sonho de Sam em seu crescimento. Entretanto, a fantasia desgasta. Com o tempo, Sam deixa de acreditar nas histórias do pai. Seu progenitor desaparece, sem deixar rastros.

Na busca pelo pai, o garoto se acidenta e acorda em uma cama de hospital. A sua frente está Gamora e Rocket Raccoon, os Guardiões da Galáxias. Eles entregam a Sam o capacete da patrulha Nova. O jovem descobre que tudo que o pai contava era verídico.

Além de recobrar as lembranças do pai, Sam Alexander se torna um Nova — um ser cósmico dotado de poderes para patrulhar o funcionamento das várias arestas presentes em diversas galáxias Isso, claro, não expele a sensação de que deveria ter aproveitado mais momentos ao lado do pai. O ouvido, depositado mais fé em sua recuperação.

Além da referência clara ao nome do novo Nova, Jeph cria uma dinâmica sensível entre pai e filho. Freando os exageros dos últimos anos, trouxe um discurso mais íntimo, calculado e emocionado. Para um personagem secundário, o primeiro número se saiu bem. Em um mês, foram 80 mil cópias vendidas.

Provavelmente, após alguns anos, Jeph estancara, ao menos parcialmente, a saída fácil. Em Nova, Retomou escritos sobre coisas que poderia sentir — aspectos que deixam de lado a raiva e o conflito incessante. Ao menos na ficção, Jeph Loeb pôde enxergar Sam levantando da cama do hospital em direção às estrelas.

Sam Loeb e Jeph Loeb

Fim.

Artes:
Tim Sale, Superman For All Seasons, 1998; 2005
David Finch, Ultimatum, 2009;
Ed McGuinness, Nova — Marvel Now, 2013;
Foto Sam Loeb e Jeph Loeb, divulgação, 2005.

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Escavando fósseis de inteligência nos quadrinhos.