Crítica — Demolidor e a cidade

Gibisauro
Gibisauro etc.
Published in
4 min readApr 13, 2015

--

A primeira temporada do demônio cego

Marcos Candido

A Marvel acertou em Demolidor. Os caminhos eram vários. Poderiam optar pela psicologia conturbada de Matt Murdock; a vida jurídica e a vida de vigilante; até os relacionamentos amorosos de Matt serviriam. A produtora, por sua vez, optou por usar a cidade como protagonista.

Quem nasceu e cresceu em uma cidade grande, como eu, deve achar belo aprecia-la do alto de um terraço, com prédios iluminados e um leve ruído incessante ao fundo. No mais, essa visão também me parece sensivelmente superficial.

Em São Paulo (meu caso) ou Hell’s Kitchen, as instituições procriadas nestas altas arquiteturas fazem, a todo instante, trâmites eletrônicos — invisíveis ou manuais. Não há uma operação pela solidariedade, mas uma manutenção do conflito causado pelo arremate financeiro, pela vaidade e pelo poder do discurso. Todos, claro, inseridos em uma ordem demagoga.

Uniforme clássico do Demolidor

A Hell’s Kitchen de Demolidor se comporta como um organismo. Os que nela habitam não moldam o espaço, mas são moldados. As instituições são falidas por dentro e as máfias em expansão geométrica e até os super-heróis que surgiram dos céus ampliaram a descrença com a moralidade.

Por mais que todos saibam que existam as falcatruas, das menores a maiores, é comum não querer sair do caos da cidade. De duas, uma: leva-se uma vida alheia e desassossegada de apreciador de prédios; ou se tenta mudar aquela região que te moldou.

Em um momento de Demolidor, Wilson Fisk afirma que a cidade estava em “seu sangue”, e que seu dever era destrui-la para construir uma nova. O ensejo de Murdock segue na mesma linha, diferenciando-se somente na forma. Não são vítimas descerebradas, mas agentes lutando pelo grande corpo citadino que desde o início é a força que os criou.

Demolidor é cruel e mostra, com minúcias, o resultado da cidade àqueles que decidiram por uma vida afastada. A violência é forte. Há assassinatos, fraturas expostas, suicídios e violência doméstica a cada episódio.

“Demolidor é cruel e mostra com minúcias o resultado da cidade”

Todas estas mazelas integram tragédia instaurada no submundo, mas gerida pela superfície branda e ilusória da justiça burocrática defendida por Nelson e Murdock; e da força das ideias que mataram o pai de Matt e impulsionam Fisk em um caminho triturador.

Em Demolidor há traços da passagem de Frank Miller nos quadrinhos, além de referências claras à Jeph Loeb, Michael Bendis e Brubaker.

Isso se reflete nos bons diálogos entre Foggy (Elder Hanson) e Murdock (Charlie Cox), além da putrefação interna dos orgãos oficiais.

Foggy possui um humor espalhafatoso, mas passa longe de constranger ao lado de uma carismática e firme Karen Page (Deborah Ann Woll). Cox passa a Murdock o mesmo feitio garboso e indecifrável dos quadrinhos, mesmo quando mostra crueldade ao utilizar o uniforme de vigilante.

O principal destaque vai para a atuação de Vincent D’Onofrio (Wilson Fisk). Assim como nas HQs, Vincent cria um ser melancólico que parece buscar o topo do crime com uma inocência infantil. Assim como os outros, ele foi formado pela violência profunda e real, mas suprimida no plano geral da cidade.

Charlie Cox, como Matt Murdock

O encaixe entre causa, desenvolvimento e resolução é bem costurado. A impressão é de que enxergaram a primeira temporada de forma episódica, sem pressa e esmero maior do que Agents of Shield, por exemplo. Também não há um didatismo pueril e tudo se explica, gradualmente, ao longo dos episódios.

Os cenários escuros de Demolidor fazem referência à arte de Maleev — artista que deu a cara aos quadrinhos do Demolidor nos últimos 15 anos - mas é improdutiva em vídeo.

Há ações difíceis de serem captadas devido a falta de iluminação. Aumentei o brilho de três TVs e: nada. Me senti cego. Sem os sentidos aguçados de Matt, às vezes usei a imaginação ou esperei uma legenda branca flutuar no fundo preto e destrinchar o que estava acontecendo. Metalinguístico.

Como dito acima, a Marvel acertou. Com Demolidor, ela amplia seu leque de produtos. Com Guardiões da Galáxia, apostou em comédia. Em Capitão-América, na ação de espionagem. Em Vingadores, no blockbuster. Em Agents of Shield, no seriado de “gabinete policial”.

Não há uma cristalização do gênero super-herói, como tentam empurrar goela abaixo. Há, com certeza, a apropriação sobre diversos gêneros, mas agora protagonizado por heróis. A receita vem dos quadrinhos, e mostra sinal de amadurecimento.

É uma estratégia certeira que, enquanto não mostrar fortes sinais de chupinhação monetária e despreocupação com o conteúdo, renderá enredos inspirados como Demolidor.

--

--

Gibisauro
Gibisauro etc.

Escavando fósseis de inteligência nos quadrinhos.