“Garotas estúpidas de cursinho que se acham fofas só porque conhecem Sonic Youth”

Nos anos 90 tudo era dos anos 90

Gibisauro
Gibisauro etc.

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Texto: Marcos Candido
Ilustrações: Daniel Clowes (Ghost World)

Antes da propaganda remediar a cura pros cravos e espinhas, ser “jovem” era fazer parte de um novo mundo imaterial, gerido pelo furor revolucionário e próspera aptidão sexual. Com o tempo, a ideia perdeu um pouco a mão. Trinta anos após maio de 68, dos Beatles e da emancipação comportamental, os adolescentes dos anos 90 adquiriam caráter com revistas, programas de TV, boy bands e shopping centers.

Hoje a vida é ainda mais rápida, verdade, mas o cataclismo de informações duas décadas atrás indicava uma tragédia ulterior para Daniel Clowes. Expoente máximo das HQs independentes, os 53 anos de idade do quadrinista deixaram uma trágica calvície em uma cabeça pequena, amparada por duas orelhas incrustadas e tímidas. Desde que publicou Ghost World em sua coletânea Eightball, se passaram 20 anos.

Ele continua a lançar novos quadrinhos como sempre fez, mas Ghost World permanece uma espécie de caricatura de toda uma geração. Na história, Enid e Rebecca são duas garotas recém-formadas, cínicas e pseudo-intelectuais dos anos 90. O mundo era um lugar maior do que nunca, mas especialmente idiota.

Enid Coleslaw

Enid Coleslaw usa óculos de hastes grossas e fala mal de todas as pessoas ao seu redor. Demoniza garotas da mesma idade e de-tes-ta revistas adolescentes!

Rebecca Doppelmeyer

Rebecca é a melhor amiga de Enid. Mesmo tranquila, ela ainda dissimula seu gosto por coisas que qualquer outra garota de sua idade também gosta!

Moradoras de uma pequena cidade no Estados Unidos, as amigas Enid e Rebecca conhecem a vida a partir de lanchonetes, pontos de ônibus e outros lugares pacatos, rodeados por monotonia. A realidade da TV e revistas dão sinais de que não há um lugar melhor para fugir, e todos estão inóspitos em uma espécie de purgatório (ao menos na cabeça delas). Embora odeiem o mundo, conhecem pouco sobre tudo.

Na realidade, todos cresciam como o planejado, mas as duas protagonistas de Ghost World ficavam para trás. Pertenciam a lugar nenhum. As opções de vida ainda mal resolvidos, cujas contradições só pareciam sentidas por elas e por um punhado de gente desencontrada. Elas, claro, não estavam desamparadas no tempo-espaço.

Nos anos 90, questões simples — fazer vestibular, arranjar emprego — deram lastro a um sentimento lamurioso, uma espécie de repúdio preguiçoso. A vida tinha uma liberdade inédita, mas as opções dignas escasseavam. Honrarias como “dê o melhor de si mesmo” e “conquiste um emprego” ilustraram comerciais de Gatorade, embalagens de Kellogs e até os telejornais. O neoliberalismo venceu, mas ninguém nunca explicou o porquê de se importar com essa bobeira toda.

As pessoas ao redor de Rebecca e Enid têm a aparência deformada, penteados questionáveis, personalidades deturpadas — pedófilos, satanistas (?), maníacos sexuais — e são desinteressantes. Não é exposto, se, de fato, são repugnantes ou uma interpretação sobre os “normais”. Todos os deformados venciam na vida.

Os tons azuis e preto acrescentam um tom bucólico atenuante à intensidade dos padrões que as querem engolir. Ghost World lapida-se no movimento. O marasmo da cidade mostra que as coisas se movem de forma regular, quase sempre mais lento do imaginado. O que passa a sensação de que tudo muda freneticamente é o discurso geral. É foda.

Em entrevista ao Omelete, Glowes analisa que o “mundo” possui um dom em “vencer” nos seus quadrinhos. É impossível se manter à margem dos comportamentos dos pais, da mídia e dos jovens reacionários mais próximos. Enid tenta. Ela compra um carro funerário, troca de cabelo e insulta ao máximo qualquer pessoa visível. Tenta transar, mas os enredos eróticos são engendrados sem a consideração de que tudo dá errado.

A sexualidade e os palavrões expressos pelas duas amigas não fazem muito sentido real. São apenas, hum, contrações naturais. Os atos importam mais do que a necessidade do ato. É tão livre que fazê-los é banal, ainda que Enid e Rebbeca dissimulem a esmo para suavizar o processo. No desfecho de Ghost World, Rebecca e Enid seguem caminhos diferentes, com matrículas e empregos convencionais. Normal.

Em 2001, Clowes redigiu o roteiro para levar Ghost World ao cinema. Uma pueril Scarlett Johanson (Rebecca) atua ao lado de uma rígida Thora Birch (Enid). Nas telas, a trama falou mais do desmembramento natural das duas amigas, antes inseparáveis. O filme concedeu ao quadrinista uma indicação ao Oscar de melhor adaptação. Não ganhou nada.

A Scarllet já era bem gata

Mesmo simpático, o quadrinista Clowes é conhecido pelos personagens amargurados. À Vice, admite que achou “apavorante” a personalidade de Rebecca e Enid. No início, a intenção era criar personagens femininos, já que os masculinos pareciam-se muito com ele. A amargura foi irredutível, até maior do que o previsto.

Em 2012, lançou Wilson, também publicado na coletânea Eightball. O herói Wilson é um senhor de meia idade deslocado, com medo de se tornar obsoleto. Ele tenta se preocupar com política e frivolidades muito dissimuladas. Talvez, hoje, Wilson reflita a persona de Clowes, assim como foi Ghost World na década de 90. Embora as entradas saltadas, o desenho de Wilson cultiva mais cabelo que Clowes. O tempo vai. O mundo vence.

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Gibisauro
Gibisauro etc.

Escavando fósseis de inteligência nos quadrinhos.