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5 min readMar 5, 2015

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Mulheres de toda a Índia: uni-vos

Texto: Marcos Candido
Ilustrações: Dan Goldman

Priya sempre foi curiosa sobre astros, planetas e galáxias. Seu sonho era ser professora. Com pouca idade, mantinha esperança em poder, um dia, esmiuçar cada elemento e desbravar o universo.

Ainda que existisse um mundo vasto, seus pais tinham planos diferentes. Priya é afastada da escola e forçada a cuidar da casa. Seu corpo se tornou um ofício violado apenas por ser uma mulher.

Lançado no ano passado, o quadrinho multimídia Priya’s Shakti conta a história de Priya, uma pequena garota indiana que roga a deusa Parvarti para destruir as injustiças cometidas contra mulheres. Apesar da pouca idade, ela sofre abusos sexuais sintomáticos da cultura em que vive.

Do alto, Parvarti ouve as preces da menina e se entristece. Sua melancolia desperta seu amado Shiva, o deus hindu do celibato, da meditação e da destruição. Enfurecido, Ele ordena uma medida radical: os homens da Terra não serão capazes de reproduzir.

O julgo de Shiva gera o caos, mas não ao promover uma vindoura extinção da espécie humana, mas por tentar desbaratar uma cultura predatória de ataques contra mulheres. A Índia, pano de fundo, relata casos de estupro em índices alarmantes. Além de brutais, os crimes tomam um tom cerimonial.

Shiva enfurecido contra os crimes contra mulheres

Em 2014, uma jovem de 20 anos foi estuprada por treze homens. Eles eram sujeitos com traços típicos dos habitantes locais — bigodes e cabelos escuros, tons de pele caramelado — e alguns até membros de uma mesma família. Amarrada em uma árvore, a vítima foi “desfrutada”, nas palavras do líder tribal de Sambalpur, devido ao envolvimento com um jovem muçulmano de uma tribo rival.

Dois anos antes, uma indiana chamada Jyoti sofreu um estupro coletivo em um ônibus de Nova Déli, capital do país. De acordo com a perícia, a mulher de 23 anos teve lesões internas causadas por objetos pontiagudos, possivelmente uma barra de aço. Ela morreu dias depois.

“Em uma tarde de fevereiro, uma jovem de 20 anos foi estuprada por treze homens”

Com a imensa repercussão deste último caso, quatro criminosos foram enforcados, alguns presos ou assassinados sob condições suspeitas. Apesar disso, muitos policiais envolvidos culparam a vítima por estar “andando de ônibus tarde da noite”. O motorista do ônibus, Leslee Udwin, foi um dos condenados à forca. Em depoimento ao canal britânico BBC, ele diz que a garota deveria ter “ficado quieta e permitido” o abuso.

Diagnósticos como este não são incomuns. Em 2012, o político Om Prakash Chautala, ex-primeiro ministro do estado de Haryana, proclamou que garotas deveriam ser casadas ainda mais cedo para, assim, “evitar mais estupros”. Desde 2007, a idade mínima para que mulheres sejam casadas na Índia é de 18 anos, mas o casamento compulsório de menores de idade é um problema crônico. No mesmo mês da declaração de Chautala, 14 mulheres foram estupradas na região de seu governo.

Usualmente, a vítima é considerada a autora moral dos crimes. Os pais fictícios de Priya também colocam a culpa dos abusos sexuais na própria garota. A partir destas particularidades, Ram Devineni, diretor de Priya’s Shakti, pensou em elaborar um enredo baseado nas confissões das vítimas de abuso. Ao Guardian, Devineni lamenta: “percebi que a violência sexual na Índia não é um problema jurídico, mas cultural”.

Priya foi construída como uma “heroína moderna”, diz Devineni, em uma história proposta a destruir o patriarcalismo ancestral. Ela busca soluções como educação universal e justiça - sem distinção de gênero. Estas medidas talvez sejam mais palatáveis aos deuses hindus. Aos humanos, ainda há muito o que se fazer.

“percebi que a violência sexual na Índia não é um problema jurídico, mas cultural”

Segundo o último censo do governo, a Índia possui 10 milhões de mulheres (acima dos 7 anos) que não sabem ler ou escrever, enquanto 44 milhões de homens indianos são alfabetizados. No campo e na cidade, elas são sujeitas aos trabalhos domésticos. Eles, por sua vez, têm chances maiores em ingressar no curso superior, dentro e fora do país.

No campo jurídico, a Índia tenta se mover, trôpega, para rebaixar índices condenados por órgãos internacionais de direitos humanos. Com uma manobra técnica, as estatísticas passaram a desconsiderar violações sexuais dentro do casamento, além de não considerar como válido os matrimônios de meninas abaixo dos 10 anos de idade. Em 2012, estimativas policiais apontavam que um estupro era cometido a cada 18 horas, muitos sem qualquer resolução.

Durante o enredo de Priya’s Shakti, a protagonista sofre violência sexual de aldeões que a viram crescer. Distante do registro midiático, a área rural possui mulheres como uma vulnerabilidade maior que as da cidade.

Entretanto, ocupar o mesmo ambiente é um limite geográfico indiferente aos ataques. Os números provam que há um brusco distanciamento definido entre gêneros, independente do nível de desenvolvimento de cada região.

Se na área rural os ataques acontecem pela visão de que a mulher é servil aos prazeres masculinos, os crimes concentrados na metrópole urbana de Nova Déli, mostram uma face revanchista à emancipação feminina moderna, mais visível na capital.

Shri Rajpal Singh Sain, político e ex-ministro local, declarou que mulheres não devem possuir telefones celulares, já que isso “é um convite aos problemas”. Segundo ele, sua mãe e filhas estão longe de problema, já que ele as proíbe de ter acesso a comunicação.

Afrontando o ideário emasculado de Shri Singh, os elaboradores de Priya’s Shakti lançaram na rede a tag #StandWithPriya, criada para unir histórias de mulheres vítimas de estupro e violência doméstica ao redor do planeta. Qualquer pessoa, por meio do celular “causador de problemas”, pode mostrar apoio a causa.

“o direito constitucional de oferecer uma vida digna às mulheres irá promover mobilizações ainda maiores no futuro”

Em poucas semanas, a tag de Priya estampou as manchetes dos principais jornais do mundo. Novos levantes feministas começaram a surgir, desta vez em setores diversificados da sociedade. Ao New York Times, a secretária nacional de defesa à mulher da Índia, Annie Raja, afirma que o “o direito constitucional de oferecer uma vida digna às mulheres irá promover mobilizações ainda maiores no futuro”.

Na conclusão de Priya’s Shakti, a garota enxerga a perspectiva de décadas a frente, com mulheres confabulando a igualdade entre gêneros. Finalmente, Priya pôde se sentir parte do universo.

Fim.

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Escavando fósseis de inteligência nos quadrinhos.