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Dançando com o Diabo
Ou “o prólogo de um livro meu”
Os escrúpulos já tinham descido até o inferno e lá permaneceriam até a última pétala das rosas vermelhas se decompor em tons de cinzas. Os desejos reuniam-se em cúpulas finas e translúcidas de vidro que rachavam a cada segundo que respirava pesadamente. As racionalidades ficavam penduradas em forcas para serem admiradas a distância. O cenário de sua mente compunha esses avisos tão perversos e cruéis que firmavam o desfiar da linha de sua vida.
Condenava-se pela vontade irresistível de tomar o líquido vermelho em suas mãos, o enredo consistia em gotas salgadas que não cessavam de seus olhos, manchando com brilho as bochechas rosadas e nublando a visão dos olhos cor de mel.
Em seu peito, instalaram-se moinhos de vento — ou dragões de Dom Quixote — que rodopiavam em meio a tempestade de sua alma. Já não existia o anseio de ver o amanhã florescer em raios amarelos e laranjas, o miocárdio havia sugado para si todas as cores de cada árvore, céu e flores, ficando totalmente aglutinado em sentimentos sem cor.
O mal subia-lhe a garganta provocando ânsia, o incessante tremule das mãos ninavam freneticamente o álcool, o pavor permitia escorrer lágrimas de suor em sua curta testa, o sopro da vida era sugado a cada milésimo de segundo de seu magérrimo e pequenino corpo.
Os dias eram sempre nublados desde a primeira vez em que abriu os olhos e chorou anunciando ao mundo sua chegada. A ira dos céus informava que algo estava errado, a sua existência tinha gerado uma discussão celestial que quase fez mais um anjo cair.
Compadecia-se com amargura na infância por carregar consigo a dor, sofrimento e falecimento do parto. Mesmo com o Sol preponderante lá fora em certos dias, nunca houve luz em sua vida — ou pelo menos era isso que pensava. O verão vinha gélido e no inverno era torturante respirar.
Não podia permitir que nada invadisse sua carne sem sentir dor, ar ou toque ensurdeciam a maré de conforto que nunca se permitiu sentir. Já não havia o mais limpo dos oxigênios, era obrigada a inalar com a putrefação dos pulmões.
Celine pensava constantemente que se a morte fosse o inimigo, a vida também não era santa. A culpada pela existência do fim um dia iria vir cobrar o dom que lhe deu o começo. E não estava totalmente equivocada.
As mais melancólicas notas de um piano branco proporcionaram a sua existência, as declamadas na Terra pelo genitor e as deleitadas no Céu pelo arcanjo Miguel.
A puberdade conseguiu destruir a pequena planta que começava a nascer, a compaixão, permitindo-lhe uma vida repleta de vazios existências, culpa e lamentações infindáveis que ecoavam dentro de si como sussurros tristes. Não ocorreu um dia em que se permitiu sorrir sem exigir o sobrenatural dos músculos da face e incorporar a mais picareta e falsa personagem.
Encontrou-se na música, de forma um tanto hipócrita, uma vez que negava a descendência de seu último nome e a profissão de tal homem que condenou sua mãe ao pior das guerras perdidas: o estupro.
Dançava como se chorasse sem lágrimas, expondo ao público a dor de seu mais íntimo sentimento. A condensação e o vício pelo mais perfeito arranjo coreográfico da bailarina chegou ao ápice aos 22 anos. Não ousaria imaginar que tal número estava datada sua condenação mortal.
Não poderia saber que no fundo a genitora desejou seu nascimento mais do que tudo no mundo. Ao parir por horas e sentindo os ossos quebrarem e o sangue ferver, a mulher invadida pelo mal dos homens rogava a Deus que a levasse, mas deixasse a criança viver.
Pelas mãos leves e fortes do arcanjo guerreiro Dele, a música mais fúnebre foi tocada, permitindo assim a vida. O pedido milagroso foi atendido pelo céus, por Miguel, o arcanjo do Senhor.
Só que quando o sopro da vida lhe fosse dado, a pequena prole estaria amaldiçoada e carregaria consigo por toda a vida a pior das dores, a depressão.
Furioso pelo feito de seu guardião, o ser celestial que criou nosso mundo quase fez Miguel cair naquela noite. Em seu quase indefensável argumento, o anjo falou que fez o gesto em um ato de coragem por desejar que o mal não desse um final tão terrível a mulher que caiu nos encantos de um pianista cruel.
Com fúria, os céus trovejaram, os raios iluminavam com terror a noite fria, a chuva começava a cair com ódio, balançando os galhos das árvores que batiam ferozmente na janela do hospital. As vozes grossas de Deus saiam do céu e caiam em forma de tempestade. Indo contra a vontade do Senhor, ela nasceu.
Saindo em um tom de roxo que beirava o preto, o bebê estava morto, mas por meio das notas intensas e interruptas de Miguel, o dom da vida caiu do alto e desceu até a terra dos pecadores, entrando na boca semiaberta do bebê.
E, assim, ao quase ver a mais amada filha gerada pelo pecado berrar pela primeira vez, a mãe fechou os olhos satisfeita que Deus não tinha permitido aquele mal. Após chegar aos céus, descobriu que quem lhe atendeu foi o arcanjo, e que o todo poderoso, por outro lado, havia jogado uma praga em sua filha.
Desejou voltar no tempo, impedir o pedido, e viver a vida eterna ao lado da criança do que passar anos assistindo o cisne negro morrer aos poucos. Esta mesma ave andou pelo firmamento de não saber onde pisar sem se machucar, caminhou duramente sentindo os pés arder e pode sentir a sensação de tortura diminuir quando pode dançar pela primeira vez.
Insatisfeito de ver uma obra de seu magnânimo plano sair pela culatra, Miguel ousou fazer um acordo com seu antigo e caído irmão. Invocou Lúcifer com um suplício terrível, e recebeu o irritado e maligno parente aparecer diante de si, uma visão breve dos olhos negros e da face vermelho sangue. Sentindo o alívio tomar a ponta de seus dedos, percorrer o corpo e tocar suas penas brancas, o arcanjo sorriu para o demônio.
Lúcifer exigiu de imediato entender a inusitada ocasião, já que não podia colocar os pés no Céu, precisou reunir todas as forças para aparecer sutilmente na frente de Miguel, como um ar que evapora constantemente e depois retorna a sua origem, a imagem do diabo era quase translúcida para o seu irmão não-caído. O anjo sentia culpa e lamentava o tal feito, explicou em detalhes seu ato de insanidade e revelou como Deus se enfureceu.
O capeta riu na cara de Miguel, já que este quase seguiu o mesmo caminho dele. Mesmo se divertindo de tal trama peculiar, o anjo caído ficou confuso.
– Afinal, o que queres que o Rei do Inferno faça em relação a ação desmedida de um simples querubim? – Foi, então, que as asas se encolheram, os ombros diminuíram, o olhar foi para os pés, mirando o chão brilhante e branco dos céus, que Miguel falou:
– Não suportarei a eternidade com a dor que instalei nessa alma. Não aguentarei conviver com meu ato que julgava ser o certo. Te peço, te suplico, te imploro e te rogo que resgate esse ser do mais pesado e terrível infortúnio, dando-lhe o sopro da morte. Já que nosso Pai nega meu pedido, minha única alternativa foi te procurar esperando como um insano a sua misericórdia.
Lúcifer ficou incrédulo com tal pedido, pensou por alguns segundos, mas não entendia em que ponto a alma seria liberta. Com a morte, seu irmão julgava que a criança iria para o purgatório e talvez até para os céus? Miguel desejava que o diabo ousasse interferir ainda mais nos planos divinos? Que encriptasse as mensagens divinas e invadisse mais ainda os desejos de seu pai? Se aquela criança não deveria nem viver, por que logo ele seria o responsável por planejar o falecimento e, assim, realizar a vontade ou desgosto de Deus com o retorno da alma amaldiçoada?
– Permito lhe conceder o feito do pedido se… – os olhos de Miguel tremiam sem parar ao encarar a face monstruosa do irmão – somente se eu levar a alma comigo. O perdão de nosso pai tira-me por toda a eternidade milhões de pecadores que merecem ser punidos.
–Ela não tens culpa! Não pecou! É ingênua! Respirou a poucos segundos e mesmo se vivesse alguns anos ainda é digna de ser recebida no purgatório assim como os demais! – Berrou o arcanjo.
–Ela será digna somente se conseguir, antes dos 22 anos, encontrar uma das duas virtudes humanas mais queridas por nosso pai. Caso não, a alma descerá para o inferno de imediato.
As asas brancas estavam arrepiadas até o último pelo fino das penas, Miguel não sabia o que dizer, odiaria ver a alma viver muito tempo, mais do que 22 anos, com o mal da depressão instaurado em sua mente para sempre, sem poder presenciar a vida como de fato ela é. Tudo isso por conta de sua ambição pecadora ao tentar ser Deus. Suspirando, Miguel cedeu:
– Pois que assim seja! Quais seriam essas virtudes?
O diabo sorriu maliciosamente quando percebeu que o tolo irmão havia caído em seu jogo, não imaginando que, assim como o de Miguel, seu intocado plano iria arruinar assim que fosse posto em prática por ele mesmo.
– O amor ou a fé – os olhos de Miguel arregalaram.
– Como pode uma alma que o próprio Pai odeia a existência na Terra ter fé?! Como pode um ser que nunca sentiu prazer ou felicidade na vida encontrar o amor?!
– A buscarei quando completar 22 anos e ela cairá comigo. Será uma criança caída na vida adulta. – Então, Lúcifer desapareceu.
Celine peregrinou como uma coitada durante todos os segundos de sua vida até os 22 anos.
Até que a tempestade mais perversa começasse dentro de si e fora, até que ela sucumbisse aos mais mortais vícios e não morresse, sairia daquele plano apenas pelas mãos do diabo.
Ela foi vivendo até segurar a taça de vinho na mão sentindo que algo terrível a atacaria a qualquer momento e, ainda por cima, sairia de seu próprio peito, mãos e olhos.
Gritando pela injustiça de sua existência, sentindo os escrúpulos no inferno, os desejos em cúpulas e as racionalidades enforcadas, Celine viu um vulto preto através da janela se mover em meio a tempestade.
Não entendia a maldição que assolava sua alma, pegava para si a culpa de tudo que havia causado desde que o primeiro som de sua vida foi proferido e último suspiro de sua mãe foi dado.
Dentro todas as atrocidades cometidas por si em momento corriqueiros de insanidade, não entendia ela que justo aquele sentimento seria o seu salvador.
Entre todos os pecados acometidos em sua ínfima e humilde vida, o mais lastimo, sombrio e condenador de todos seria o menos esperado, o amor. Seria este que colocaria empecilhos nos planos de Lúcifer justamente quando Celine estivesse dançando com o diabo.
Prólogo do livro Dançando com o Diabo.