DESCANSO

Ou “ela podia descansar também”

Giovana Silvestri
Giovana Silvestri
3 min readAug 19, 2023

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Ela acordava todo dia com o mantra: eu preciso cuidar dela. O primeiro pensamento que lhe tomavas já angustiava, com dores nos quadris e beirando aos sessenta, ela levantava, cansada, o peso do corpo a esmagando, dor e angústia. Mas o preciso cuidar dela a salvava. Ela cuidou tanto de mim, lembrava. E cuidava. O banho que ela dava. A forma como ela acariciava. Mãe, vamos tomar banho. Quem é você? Doença degenerativa perversa. E machuca, como machuca a conta bancária não fechando. E se vira, chorando, recebendo as ligações de cobrança. Três trabalhos: dois em casa e um fora. E cuida e ama, como quem ama um filho de quase noventa anos. Mãe? Quem é você? Isso a corria mais do que tudo, mais do que a troca de fraudas rotineira, mais do que o despertar de madrugada com os gritos do Alzheimer, mais do que as alucinações que juntavam o passado e o presente em somente um só. A mãe dela perguntava sobre os pais dela, é isso era demais. Eles morreram, há mais de anos… e a mãe dela revivia um luto ao ponto de que a filha parou de falar… começou a mentir… ela iria esquecer a promessa de que eles iam aparecer daqui a pouco… e ela esquecia sorrindo. Ela melhor do que relembrar chorando. E a dor emocional se alastrou pelo corpo. Estresse e coceira. Tudo lhe coça sem motivo. O médico falou: relaxe que vai passar. Mas como relaxar se minha mãe precisa de mim e eu preciso mais de mim do que qualquer outra coisa e nesse ponto da vida não há mais ninguém por mim? Quem estava. e sempre estivera por ela tinha se esquecido dela… sabia que no fundo daqueles olhos enrugados e abatidos ela sabia… ela tinha que saber… era a filha dela cuidando por ela. E isso se concretizou quando, após relutância da mãe pedindo para não lavar o cabelo, ela lavou e se ajoelhou em penitência, encontrando a cabeça nos joelhos da velha e pedindo seu perdoa: mãe, me perdoe, a senhora não queria que eu lavasse o seu cabelo… e eu lavei, fazia dia e era o melhor se fazer… me perdoa… me perdoa… suplicou como se estivesse no confessionário confessando um assasinado ao padre que concedia o perdão sem conseguir perdoa… mas a mãe perdoou lembrando… ela disse: eu te perdoo, minha filha… esse foi o presente de Deus… o único que aliviou a sentença da filha… e esse cárcere de dor e pesares acabou quando ela morreu… suspirou aliviada e ainda. se sentiu culpada pelo alívio… mas no fundo ela e a mãe sabiam que tudo estava certo… foi Deus, a filha pensou, que me livrou de minha mãe… mesmo eu a amando, aquele amor, aquele pesado e triste amor… aquele nervoso, estressante e penoso amor… ele acabou e ainda bem que ele acabou… porque aquele amor, ela pensou, estava me matando. E ainda bem que não matou. Era domingo de um dia chuvosos e triste, a velha morreu, eles diziam que ainda bem… afinal tantos anos sofrendo com Alzheimer… ela descansou, murmuravam quando o caixão descia… e a filha apenas sentia uma lágrima descer de seu rosto pensando que agora, finalmente, ela poderia descansar também.

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