Uma fuga nas estrelas.

Giovana Silvestri
Giovana Silvestri
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11 min readAug 22, 2018

Giovana Silvestri. (Resenha cultural)

Usar o espaço sideral, o universo, as estrelas ou os planetas nas produções audiovisuais é uma tendência que a arte contemporânea adotou. Acredito que de maneira mais impactante e difusa com as atuais produções, sendo com longa-metragem, série e até clipe de música.

Muitos filmes envolvem o universo e focam nos seus desafios ou complicações. Parece até que algumas produções tentam constantemente em seu enredo exaltar a dificuldade que é ficarmos seguros e sem grandes problemas fora da Terra. Chegam a provocar um sentimento de pavor em relação ao local escuro, frio, belo e infinito que é o espaço, tentam mostrar como sem oxigênio, sem alimento, sem calor, sem som, no vácuo, ele não oferece a menor condição de sobrevivência.

Isso acontece em Gravidade (2013), quando a personagem de Sandra Bullock começa a lutar para sobreviver. O enredo deixa explícito em vários sentidos e formas que o universo é um lugar hostil. As inúmeras situações de risco que a Dra. Ryan Stone precisa enfrentar parece uma tentativa constante de mergulhar o telespectador numa sensação de angustia ou medo em relação ao universo.

Ryan é escolhida para uma missão espacial que visa consertar o telescópio Hubble junto com o experiente astronauta Matt Kowalski e mais um terceiro astronauta de Harvard. Eles são surpreendidos por uma chuva de destroços decorrente da destruição de um satélite por um míssil russo, são jogados no espaço sideral e assim começa a luta pela sobrevivência. Além disso a Dra. Ryan parece ter alguns conflitos pessoais e traumas envolvendo sua família e filha, algo que vamos descobrindo com o desenrolar da trama.

Tirando todo o lado patriota americano de tentar provar sempre, em algum filme ou série, que independente da circunstâncias o ser humano (norte-americano estadunidense) consegue resolver qualquer problema, Perdido em Marte (2015) não foge da mesma interpretação de Gravidade, mas a modula de outro jeito.

O longa não deixa seu personagem principal em um local de perigo até o último instante da produção. Marte aparece um lugar até reconfortante, onde batatas crescem, oxigênio e água são produzidos mesmo com as grandes tempestades de areia.

O astronauta americano Mark Watney (Matt Damon) consegue impor sua inteligência e humor acima das dificuldades que aparecem, assim não ficamos submersos em uma angustia ou num desconforto constante.

O enredo mede pitadas de esperança com picos de adrenalina, variando nas situações em que o personagem consegue seus objetivos para sobreviver e as em que tudo piora. Além do senso de humor icônico que Mark tem mesmo sozinho e tentando sobreviver em um planeta desconhecido. Todas as cenas retomam ao que é afirmado sempre em Gravidade, mas acrescenta uma cláusula: O universo é um lugar hostil e até Marte consegue ser menos pior.

Contudo, algumas obras conseguem fazer do universo um escapismo.

“Escapismo ou desejo de evasão é o alívio ou a distração mental de obrigações ou realidades desagradáveis recorrendo a devaneios e imaginações. Podemos definir escapismo também como a desconsideração da realidade.” segundo o Wikipédia

Ele surge do Romantismo, movimento cultural do século XIX que começou na Alemanha. Para os românticos, o mundo real é sempre uma frustração.

Os poetas românticos, mais especificamente os “poetas do mal-do-século”, buscavam fugir de seus problemas, desilusões e sofrimentos que provinham da realidade, correndo em direção a algumas “soluções” ou maneiras de lidar melhor com aquela sensação ruim de desilusão, desesperança ou tristeza.

Eles tentavam se aproximar da natureza, relembrar do passado (infância), preferiam viver no mundo onírico, e alguns até optavam pela morte, como é o caso mostrado no livro (fundador do romantismo) Os sofrimentos do Jovem Werther (1774) original em alemão: Die Leiden des jungen Werthers.

Eu li o livro e depois que descobri o fundo auto bibliográfico da obra muitas coisas fizeram sentido. O tom profundo, tempestuoso e dolorido que a escrita carrega é algo vivo no livro, no personagem e, portanto, no próprio autor.

A visão negativa de Goethe sobre o amor é intrínseca em sua obra. O autor tenta nos convencer que o amor, as relações afetivas e tudo que as envolvem gera sofrimento em algum grau.

Werther pode ser entendido como um jovem intenso, sentimental e sem autoestima que não sabe lidar com a rejeição de um sentimento, ou como um jovem sensível e apaixonado que não suporta viver sem sua amada e prefere qualquer coisa que não seja essa realidade tão dura.

O livro é formado por cartas que Werther envia a um amigo próximo, ele acabou de se mudar e atualiza seu colega sobre tudo, até sobre sua paixão platônica por Charlotte que o consome a cada dia. Em algumas cartas podemos identificar ansiedade, angustia e até depressão no personagem.

Tudo começa a ficar cada vez mais sucinto, repetitivo e confuso. Nada do que é físico é descrito e perdemos conexão com a realidade do personagem, ganhamos contato apenas com ele e sua dor. Quanto mais próximo do final ficamos mais desconhecemos o Werther do começo do livro, o personagem se afunda em um sofrimento tão intenso que o perdemos de vista, recebemos apenas cartas relatando a sua dor e cansaço de viver com ela.

A obra literária gerou na época o chamado “efeito Werther” o que levou a proibição de sua venda na Alemanha. Os jovens românticos alemães começaram a se identificar tanto com o personagem, sua dor e posterior suicídio que os adotam para si. Começa então uma onda de suicídios entre os jovens que assombram a Alemanha. Isso nos prova como a arte pode influenciar, afetar e conduzir não apenas uma pessoa, mas uma sociedade inteira de maneira bem negativa.

Interestelar (2014) e o clipe oficial da música Let’s Go da banda Stuck In the Sound revelam esse escapismo.

O sentimento de não pertencimento, a necessidade de se provar melhor, a atitude de priorizar uma realização pessoal do que as relações afetivas, sendo familiares ou não, é visível no personagem coreano da animação que passa durante o clipe de Let’s Go. A animação é impressionante ao ficar sincronizada com a música.

O clipe passa a visão da sociedade meritocrática, militarizada e robótica da sociedade pós-moderna. A história conta a vida de um jovem que sonha desde pequeno em ser astronauta. Ele rejeita durante toda sua vida relações, vínculos, pessoas, sua família ou qualquer coisa que o faça perder o foco em alcançar seu sonho.

Mas quando ele o alcança… não se sente feliz e logo se arrepende ao ver que perdeu tudo que tinha ou tudo que poderia ter vivido. O personagem tem um surto de pânico ao notar que a terra explodiu e que aquilo que mais queria: o universo, é a única coisa que lhe resta agora.

Essa escolha por solidão, realização pessoal ou a ambição de ir para o espaço também aparece em Interestelar com o personagem de Matthew McConaughey. Além do arrependimento de partir e perder vínculos, pessoas e momentos que poderiam ter sido vividos na Terra.

Cooper é um engenheiro espacial que começa a trabalhar como fazendeiro cultivando milho para alimentar a população pois falta comida. A Terra está improdutiva, a maioria dos alimentos acabaram, as plantações que restam são constantemente atacadas por pestes ou tempestades de poeira. Segundo a opinião pública: não é necessário mais de engenheiros, quando falta comida na mesa é preciso ter bons fazendeiros.

O personagem detesta sua profissão, as condições em que precisa viver, como a humanidade esqueceu seu potencial e optou por esquecer grandes feitos como a chegada na lua. Mais do que isso, Cooper parece distante quando está na Terra sua única ligação forte e relevante é com sua filha Murphy.

Contudo não nega sua vontade de viajar para o espaço quando é chamado para liderar uma missão espacial por tempo indeterminado. A viagem busca explorar novos planetas que podem substituir a Terra. Antes de escolher, Cooper conversa com seu sogro que expõe o sentimento do genro de não pertencimento dele naquele lugar e naquela época.

“Parece que você nasceu 50 anos adiantado ou 50 anos atrasado”.

O silencio do personagem durante a cena é uma concessão triste, solitária e desconfortante.

Procurando fugir de suas desilusões, anseios e insatisfações, ou seja, utilizando o escapismo (além da vontade de salvar o planeta e sua família de uma morte lenta na Terra), Cooper embarca numa viagem que se configura em uma serie de cenas, diálogos e monólogos que fazem o enredo de Christopher Nolan soar autentico, inteligente, esplêndido e emocionante. Cada minuto do longa nos aproxima mais da relação entre Murphy e seu pai, mesmo anos luz de distância, permanecem unidos durante toda a história.

É contraditório como o escapismo usado por Werther para evitar relações é usado nos longas para enfatizar as relações humanas. Cooper se liga cada vez mais a sua filha, o japonês do clipe busca desesperadamente por convívio na final história. Todos os laços afetivos são valorizados quando o personagem opta por uma fuga nas estrelas, e principalmente quando ele chega nelas.

Essa valorização dos vínculos sociais quando estamos no espaço é levado ao extremo em Final Space com o personagem Gary Goodspeed.

Final Space é uma animação adulta criada pela TBS e disponibilizada pela NETFLIX no Brasil. A série contém 10 episódios de pouco mais de 22 minutos e conta a história de Gary: um preso espacial que acredita ser comandante da nave na qual esta detido.

Por estar preso numa nave no meio do espaço, Gary não tem amigos ou qualquer contato com outro ser humano, apenas é rodeado de robôs incluindo o KVN, uma inteligência artificial que flutua e serve para manter sua sanidade mental, mas só consegue irrita-lo.

A pena do personagem tem duração de cinco anos e em todos os dias de sua prisão Gary grava um vídeo-vlog para sua amada Quinn que não recebe, nem assiste e muito menos responde suas mensagens. Durante a trama o personagem conhece alguns seres que se tornam seus amigos como Mooncake: um ser verde e redondo que flutua e só sabe dizer “Chookity” e o Avocado um “homem-gato” enviado para matar Gary e sequestrar Mooncake, mas depois se torna melhor amigo de Gary.

O isolamento é lidado de forma bem descontraída pelo personagem, ele parece se afetar emocionalmente, mas ao fazer os vídeos diários para Quinn e crer sempre que é o capitão da nave, Gary parece divertido e até feliz, não se isolando de sua tristeza, solidão e ansiedade para liberdade, ele abraça todas essas vertentes e as aceita. A série consegue fazer do nosense uma válvula de escape, muito presente nas falas de Gary, para as questões pesadas que ela aborda, como o isolamento, a morte, a solidão e a existência.

Por mais sutil que seja, Final Space tem um niilismo intrínseco em Gary, ele não se apavora com a possível morte, não vê muitos problemas com isso, parece procurar nos primeiros episódios fazer o impossível mesmo sabendo que pode morrer. Porém, podemos dizer que ele vai além disso.

Gary é um niilista positivo carente.

Niilista positivo pois: ele não acredita que tenha um propósito em sua vida (por mais que se diga presbiteriano em um episódio) e não se torna negativo ou pessimista com isso, Gary aceita a falta de um grande propósito em sua vida e abraça isso com humor. (sem levar em consideração conquistar a Quinn, isso pode ser um propósito na vida do personagem ou conseguir comer um biscoito de chocolate. Sim, o nonsense é muito explorado).

Mas voltando ao escapismo. O personagem se torna cada vez mais dependente das relações humanas (e com razão). Obriga um mercenário, Avocado, que vai até sua nave matá-lo e sequestrar seu amigo verde Mooncake, a jogar nove horas de cartas com ele. Gary também opta por continuar uma viagem no espaço até sua nave para se salvar com Mooncake mesmo sabendo que com seu amigo não teria chances de chegar vivo.

Gary carece de atenção, afeto ou companhia de alguém com sentimentos reais, por mais que crie um ótimo contato com os robôs da nave (menos com o KVN) ele tem a necessidade de um ser vivo como companhia. Ele se demonstra disposto a fazer qualquer amizade durar, mesmo sendo traído, podendo perde um braço ou sua vida.

Gary não se importa com nada disso, como o HUE (robô que comanda a nave) diz

Gary sempre põe a vida das outras pessoas acima da dele”.

Uma empatia fora do normal, mas isso não o isenta de ser um anti-herói, ele é preso, traumatiza uma família, quase mata um homem, persegue a Quinn e destrói um restaurante.

Dra. Ryan, Mark Watney, o jovem coreano, Cooper e Gary são personagens inseridos dentro de um contexto que os remetem ao espaço, seja por destino, escapismo ou forçado. Por mais que alguns longas como Gravidade e de Perdido em Marte tentam nos colocar no inconsciente que o universo não é uma boa opção, outros como Interestelar (2014) e o clipe Let’s Go mostra a escolha de personagens para esse lugar hostil e apaixonante que é o universo.

Mas Final Space rompe essa barreira, Gary não quer estar no espaço, ele precisa estar. O personagem busca apenas se relacionar, ao contrário de Cooper, o coreano, Dra. Ryan e Mark, ele não está em busca de uma realização pessoal, sonho ou teve alguma escolha em estar ali, todos eles sentem falta, ao fugir para as estrelas, de relações afetivas, de pessoas, de momentos, da vida. Em algum grau há um arrependimento ou angustia por essa falta de relação.

Ao julgar Gary carente reforço seu melhor valor: a consciência de que o homem é um ser gregário (sociável) por excelência. Por isso o personagem tenta manter contato com o que faz ele se sentir vivo, se sentir humano. Logo mesmo podendo sair do espaço Gary permanece na nave (até após o fim de sua pena) por causa dos vínculos sociais que ele criou, sendo com robôs, pessoas, homem-gatos ou um ser redondo, verde e flutuante.

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