Os oitenta tiros não foram por engano

O assassinato de mais um corpo negro expõe o ódio do Estado pela população de áreas de vulnerabilidade econômica do Rio de Janeiro

Lucas Gomes
GIROSCÓPIO
5 min readApr 13, 2019

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Reprodução: Internet

A tarde do último domingo (7) marcou um novo episódio de violência contra a população negra do estado do Rio de Janeiro. Evaldo dos Santos Rosa, músico de 51 anos, estava dirigindo seu carro, acompanhado do seu sogro, esposa e filha, no bairro de Guadalupe, na Zona Norte da cidade, quando foi executado por soldados do Exército Brasileiro. Seu veículo foi alvejado por 80 tiros de fuzil em plena luz do dia. Segundo o delegado Leonardo Salgado, da Delegacia de Homicídios, tudo indica que os militares fuzilaram o carro por engano.

Mesmo que o número assuste, esse não foi o caso com maior número de disparos por engano nos últimos anos. Em 2015, no bairro de Costa Barros, 111 tiros atingiram um carro onde estavam cinco jovens negros. Assim como no caso mais recente, não houve ataque aos policiais para justificar a quantidade assustadora de munição utilizada. Em março, na Comunidade da Chatuba, na Baixada Fluminense, Kauan Peixoto, de 12 anos, foi baleado com três tiros por engano durante operação da Polícia Militar. “Meu filho encostou na parede, deram um tiro na barriga dele e quando caiu, levou outro na perna. Depois, o algemaram e colocaram no carro” — declarou Luciana Pimenta, mãe do menino, mais uma vez, negro.

Em 2014, Claudia Silva Ferreira, mulher negra de 35 anos foi, por engano, baleada no Morro da Cogonha, Zona Norte do Rio de Janeiro, e arrastada pela viatura da Policia Militar por 350 metros. “Eles estavam achando que ela era bandida, que ela estava dando café para os bandidos” — afirmou Thaís Lima, sua filha, ao relatar o susto dos policiais ao verem um copo de café na mão da vítima. Outro instrumento que assusta muito os policiais, que fazem treinamento para exercer a profissão, é o guarda-chuva. No fim de 2018, Rodrigo Alexandre da Silva, homem negro de 26 anos, carregava o seu quando foi, por engano, assassinado pela PM na Comunidade do Chapéu-Mangueira, na Zona Sul da cidade.

Os assassinatos cometidos por órgãos de segurança pública se assemelham pela brutalidade, condições socioeconômicas dos atingidos e, sem variação, pela cor da pele. A organização demográfica do Rio de Janeiro é resultado do crescimento urbano desorganizado e do esquecimento do povo negro recém liberto do sistema escravocrata. As tentativas desenfreadas de embranquecimento da população colocaram os pretos em uma posição de vulnerabilidade social que reflete nos dias atuais, principalmente após o crescimento do comércio de drogas em lugares onde a atuação do estado é precária. Hoje, são mais de 840 áreas ocupadas por grupos que têm essa atividade como a principal de retorno econômico. Com isso, a repressão policial se tornou a única forma de intervenção do Estado dentro dessas localidades.

Esse caráter repressivo é fruto da narrativa de ‘Guerra às Drogas’, criada para combater o consumo e o comércio ilegal de psicoativos utilizando todo o aparato policial possível. Viatura, fuzil, caveirão, tanque, PM, Exército. Tudo que puder entrar numa favela, a segurança pública utiliza, encarando o local tal qual um campo de guerra. A fórmula utilizada — que parece não ser a mais eficaz — tem resultados práticos de pouco retorno. No assassinato de Kauan, por exemplo, foram arrecadados 288 trouxinhas de maconha, 235 pedras de crack, 362 cápsulas de cocaína, três rádios Baofeng e 98 reais em espécie. Valores ínfimos comparados aos 130 quilos de maconha e 200 munições de fuzil encontradas no carro de Breno Fernando Solon Borges, homem branco, filho de desembargadora do Mato Grosso do Sul, em abril de 2017. Curiosamente, nenhum disparo — nem mesmo por engano — foi feito.

Dois pesos, duas medidas. (Reprodução: Internet)

A forma de abordagem também difere. Caso você seja negro, o tratamento inclui fuzil na cara, ser encostado na parede, onde não ser alvejado é lucro. Caso seja branco, com licença e por favor, com armas abaixadas. Numa área de condições socioeconômicas precárias, ainda que o estado sofra com dívidas, não mede esforços para gastar balas. Em contrapartida, se for em uma área nobre, nem ao menos se considera a utilização de armamento. Sempre se preocupando se os alunos da Pontifícia Universidade Católica ficarão assustados com as trocas de tiro na Favela da Rocinha. Os moradores já estão acostumados. Os chefes do poder Executivo corroboram esse ponto de vista. O Presidente da República, Jair Bolsonaro e o Governador do Estado, Wilson Witzel, já se mostraram favoráveis à ampliação do excludente de ilicitude, que retira a responsabilidade do policial caso ele cometa um homicídio durante o exercício de sua profissão, seja ele por legítima defesa.

O excludente de ilicitude já existe no código penal, quando um ato de violência é cometido por policiais contra um indivíduo, em legítima defesa, e encaminhado para avaliação de um juiz ou delegado. No segundo caso, deve-se registrar um boletim de ocorrência e abrir uma investigação policial, para decidir se o profissional terá de responder judicialmente. A diferença é o desejo dos atuais governantes em ampliá-lo, tornando preestabelecida a legítima defesa do policial em qualquer situação. Isso, entretanto, fundamenta os “autos de resistência”, como são chamadas as mortes em decorrência de atividade policial.

A legítima defesa, entretanto, foi o argumento que os soldados que assassinaram Evaldo utilizaram. Para se defender de um homem negro que cometia o crime de ir para um mero chá de bebê, os soldados acertaram oito dezenas de tiros no seu carro. Mas, segundo o Governador Witzel, não lhe cabe dar juízo de valor, haja visto que o homicídio não foi cometido pela Polícia Militar do Rio de Janeiro, mesmo que tenha acontecido no estado onde ele é o Chefe do Governo. O prefeito da cidade, Marcelo Crivella, também não comentou sobre o assunto. O Presidente da República, ex-militar, também não usou seu meio de comunicação oficial, o Twitter, para falar sobre o caso.

Evaldo era segurança numa creche e, além disso, músico em um grupo de pagode. Tinha filha, esposa, era querido por amigos e colegas de trabalho. Todos os requisitos para ser considerado um cidadão de bem, que faz o País se orgulhar. Exceto pela cor da sua pele. Por ser negro, Evaldo foi morto por engano pelo Exército Brasileiro que, assim como outros órgãos de Segurança Pública, colaboram para as estatísticas do genocídio negro diariamente. O Exército Brasileiro, que deveria proteger seus cidadãos na totalidade, esquece a população negra, deixando-a em uma luta diária pela própria sobrevivência. O Estado teve 4950 homicídios dolosos no ano de 2018, segundo o Instituto de Segurança Pública. A resposta para isso é o aumento da repressão, principalmente em áreas de vulnerabilidade socioeconômica. O Caveirão entra nesses locais representando todo o ódio que o Estado tem pelo pobre. Quando ele sai, o número de habitantes não é mais o mesmo. Ele diminui. Sempre em um caso isolado. Sempre levando vidas. Vidas negras, que importam.

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Lucas Gomes
GIROSCÓPIO

Contos Marginais. 23 anos não passando de um malandro.