131 anos de Lei Áurea não aboliram o racismo do estado brasileiro

Como o último país a abolir a escravidão retrata esse momento histórico e preserva a sua estrutura segregadora até os dias atuais

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6 min readMay 18, 2019

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#PraCegoVer: Ativista do movimento negro exibe cartaz de protesto. (Reprodução: Internet).

Por Carolina Pinheiro

Por volta do ano de 1538, os primeiros negros chegaram ao Brasil. Eles vieram nos chamados “navios negreiros”, em condições sub-humanas, com destino ao trabalho forçado. O tráfico dessas pessoas gerou lucros extraordinários para os criminosos responsáveis e inconcebíveis traumas para aqueles capturados em solo africano. Após quase 400 anos de escravidão, crueldade e dor, em 1888, uma princesa branca finalmente liberta todos de uma vez, assinando a Lei Áurea. Só mesmo um estado racista para criar um mito, no mínimo desconcertante, desses.

Evidentemente, a data da abolição da escravatura importa, mas o modo como retratam esse acontecimento é bastante problemático. Primeiro, o destaque dado à Princesa Isabel e a abolição entendida como um grande “favor” aos negros demonstram bastante ignorância quanto à realidade dos fatos. O Estado brasileiro sempre se beneficiou da política racista da escravidão, afinal, através dela foi construída a riqueza do País. Por isso, fomos os últimos da América a abolir esse sistema, no momento em que não era mais possível conter a pressão inglesa. Ou seja, nada próximo à singela benevolência da sinhá.

Segundo, a falta de reconhecimento dos negros como protagonistas da sua própria liberdade causa danos grotescos para a construção da memória do povo brasileiro. A população negra sempre se organizou em movimentos de resistência, como a criação de quilombos — destaque para o dos Palmares –, as rebeliões nas senzalas, a Revolta dos Malês, entre tantos outros. Além disso, existem figuras como Luiz Gama, José do Patrocínio e tantos outros negros que lutaram contra a escravidão, e que têm sua imensurável relevância diminuída, de maneira profunda, pelos registros historiográficos.

#PraCegoVer: Muito além da Princesa Isabel. Conheça 6 brasileiros que lutaram pelo fim da escravidão no Brasil. (Reprodução: Internet).

A forma deturpada como a sociedade brasileira enxerga o 13 de maio se revelou perfeitamente na última segunda-feira (13), quando o movimento negro foi vaiado durante a sessão solene em homenagem aos 131 anos da assinatura da Lei Áurea, na Câmara dos Deputados. Sessão essa convocada pelo filho do Presidente e o trineto da Princesa, ambos deputados federais pelo PSL, a fim de enaltecer o papel de Isabel na abolição. Em função dessa corroboração com a versão racista da luta pela liberdade, ativistas negros ocuparam o plenário e fizeram um protesto.

É assombroso como o racismo institucional do Estado brasileiro sempre sabe como se fazer presente. Na Casa do Povo, na data comemorativa da liberdade, os descendentes dos senhores de engenho vaiam aqueles que nunca puderam parar de resistir. Além do mais, tratando-se da suposta generosidade da Princesa, se seus honrados méritos vêm da assinatura, eles definitivamente param por aí. Naquele momento, era conveniente “libertar” os escravizados, não importando o modo de fazê-lo. Sendo assim, a canetada não veio acompanhada de políticas públicas de integração dos negros à sociedade. Eles estavam livres do dia para a noite, com uma mão na frente e outra atrás. E foi essa configuração que marginalizou os ex-escravizados e seus descendentes, prolongando as consequências desse projeto excludente até os dias atuais.

Enquanto o Presidente da República afirma que “o racismo é uma coisa rara no Brasil”, o país que tem a maior população negra fora da África vive sob os efeitos da segregação racial. Das vítimas de homicídio na nação, 71,5% são pretos e pardos. Uma pessoa negra tem 2,5 vezes mais chance de ser morta de forma violenta. Esses dados são do Atlas da Violência de 2018, que também demonstra que o assassinato de brancos caiu 6,8% ao passo que o de negros teve aumento de 23%. Além disso, a cada dez jovens que se suicidam, seis são negros, evidenciando os danos causados pelo racismo na saúde mental.

Não obstante, dados do IBGE de 2017 demonstram a desigualdade racial no que tange aos rendimentos. No Brasil, pessoas negras ganham, em média, R$ 1,2 mil a menos do que brancas. A diferença salarial chega a 47% a menos para os negros, entre detentores de ensino superior. Quando falamos de mulheres negras especificamente, as problemáticas são alarmantes. Elas são as mais atingidas pelo feminicídio, pela violência doméstica, pela violência obstétrica e pela criminalização do aborto. Para completar, 64,4% das mulheres pretas que são mães solo estão abaixo da linha da pobreza. Sem contar com o encarceramento em massa e o preconceito enfrentado dia após dia pela população negra.

Junto com todos esses horrores que compõem o racismo estrutural da sociedade brasileira, está o elemento institucional. O Estado brasileiro é racista desde antes da Princesa Isabel. Ele sempre renovou a abordagem de suas políticas, década após década, para subjugar a população negra e alimentar esse ciclo de marginalização. Escravidão, favelização, embranquecimento, silenciamento, perseguição religiosa, apropriação cultural, política de extermínio nas favelas. Todos esses processos têm ou já tiveram chancela do estado.

Hoje, no Rio de Janeiro, as forças militares estão assassinando mais do que nunca. Só no primeiro trimestre de 2019 foram 434 mortos, o índice mais alto em 20 anos. Na semana passada, a imagem de crianças com uniforme escolar correndo apavoradas durante o tiroteio, no Complexo da Maré, foi indigesta. Logo depois, veio a notícia de que aqueles disparos haviam deixado 8 mortos. Na terça-feira (14), o professor de jiu-jítsu, Jean Rodrigo, foi morto na frente do filho de 17 anos, quando estava a caminho do projeto social onde dava aulas.

“Tudo uma cambada de canalha. Manda a polícia ir pra rua para matar… MATAR!” — Sandra Maria, mãe de Jean Rodrigo.

Como se não bastasse essas e outras tantas outras tragédias nas quais o povo negro é sempre visto como alvo, tendo o chamado “perfil suspeito”, agora o governador do estado do Rio não só compactua com as políticas genocidas, como presencia disparos no alto de helicópteros. Ao lado da Coordenadoria de Recursos Especiais, Wilson Witzel participou de uma operação policial que atirou contra vários locais, entre eles, um tenda evangélica, no dia 4 de maio, em Angra dos Reis. Diante desse absurdo e da política caótica de segurança pública do governo, a Deputada Estadual, Renata Souza, denunciou Witzel para a Organização dos Estados Americanos (OEA) e para a Organização das Nações Unidas (ONU). Em seguida, membros do PSC, partido de Witzel, entraram com pedido de cassação da Deputada na ALERJ, mas a Assembleia rejeitou o pedido.

“Esses policiais não estão aqui para atirar em pessoas de bem, e não estamos procurando o confronto. Essa chacina não é praticada pela polícia, nem a militar, muito menos a Polícia Civil (…) Hoje quem mata não é a polícia. São essas facções de narcoterroristas…”, declarou o governador.

É fato que o Brasil está longe de ser uma democracia racial, afinal, a população negra ainda sofre — e muito — com as consequências da falta de integração, resultado da capenga, frágil e inconsistente Lei Áurea. Em contrapartida, não faltam políticas que promovam a perpetuação das estruturas racistas que marginalizam, excluem e matam; vide à postura assassina das forças militares do Rio, entre Exército e Polícia.

Vale lembrar que o racismo vai além da questão da cor, sendo pautado na visão produzida pelos colonizadores de que negros sequer são seres humanos, portanto, não deveriam ser enxergados como tal. E é repugnante que essa compreensão desumanizada da população negra ainda faça parte, sórdida e amplamente, de nossa sociedade até hoje. Neste ano, o 13 de maio veio acompanhado de acontecimentos trágicos notáveis que só reforçam a necessidade do recorte de raça no país da miscigenação. Importante mesmo é perceber que a luta do povo negro por liberdade e igualdade sempre esteve latente. Enquanto houver injustiça, haverá resistência.

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