Buraco Negro e a resiliência da comunidade científica

A conquista da primeira imagem de um buraco negro, o fenômeno da anticiência e seu impacto no governo brasileiro

Carolina Pinheiro
GIROSCÓPIO
5 min readApr 20, 2019

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#PraCegoVer: Primeira imagem de um buraco negro da História, na qual há um círculo luminoso no meio da escuridão.

Nas belas palavras de Nando Reis, em algum momento, há de chegar um segundo sol para realinhar as órbitas dos planetas. A música fala sobre mudança de perspectiva e como uma nova ideia pode derrubar noções já estabelecidas. No dia 10 de abril deste ano, a primeira imagem de um buraco negro foi apresentada para o mundo. Antes da Humanidade conseguir realmente ver o ponto mais misterioso do Universo, os cientistas faziam simulações de como ele seria, baseadas nas equações de Albert Einstein. No fim das contas, o maior gênio do século XX estava certo e a semelhança entre hipótese e realidade são arrebatadoras. Não foi dessa vez, segundo sol!

Pelo contrário, a confirmação gerada pela imagem e todas as implicações dela trazem conforto à comunidade científica e um sentimento de que mais descobertas estão próximas. Para conseguir registrar o buraco negro da galáxia M87, o projeto internacional chamado Telescópio do Horizonte de Eventos contou com uma equipe de mais de duzentos pesquisadores e uma rede de oito radiotelescópios espalhados por quatro continentes. No fim, todo o minucioso empenho valeu à pena. Os cientistas consolidaram mais de um século de desenvolvimentos da física e astronomia e agora têm certeza de que estão no caminho certo.

Entretanto, ainda que devamos celebrar uma solene conquista que nos deixa mais próximo do pleno entendimento do Universo onde habitamos, a nossa realidade está longe de caminhar para o esclarecimento. Se há alguns séculos estávamos experimentando o Iluminismo e priorizando a razão e o desenvolvimento intelectual, hoje estamos voltando às trevas.

O fenômeno da anticiência, ou seja, a desconfiança sobre fatos e dados em vista do apego a narrativas falsas e simplistas, está permitindo que movimentos como terraplanismo e antivacina sejam cada vez menos incomuns. Inclusive, algumas consequências gravíssimas estão derivando desse estado de desinformação generalizada, vide o crescimento de 300% dos casos de sarampo no mundo em 2019. Até a cidade de Nova York declarou emergência devido a um surto do vírus nesse mês de abril — apesar de a doença estar erradicada desde 1991.

É curioso observar que a rejeição aos especialistas está presente tanto no campo das ciências humanas como no das exatas. Revisões históricas, manipulação e negação de eventos não são tão inesperados assim, já que o grau de subjetividade das Humanidades abre mais espaço para a interpretação. A não formulação de verdades universais, por exemplo, custa às ciências humanas uma desconfiança já conhecida, principalmente quando existem interesses de grupos mal-intencionados que podem se apoiar nessa suposta falta de precisão de áreas como história, sociologia e filosofia.

Por sua vez, as ciências exatas sempre gozaram de uma legitimidade em função de sua capacidade comprobatória. Não era qualquer um que poderia contestar conteúdos provenientes da medicina ou da astronomia. No entanto, hoje nos deparamos com Olavo de Carvalho sendo “guru” do governo federal brasileiro.

Embora não possua nenhuma formação superior, esse senhor insiste em refutar grandes nomes como o próprio Einstein, responsável pela teoria da relatividade geral — de onde derivou, inicialmente, a possibilidade da existência de buracos negros, exatamente aquele fenômeno misterioso e espetacular estampado na foto concebida pelo projeto internacional. Além de angariar popularidade a partir de narrativas mirabolantes, Olavo agora indica nomes para importantes pastas do governo Bolsonaro, como Ernesto Araújo, atual Ministro das Relações Exteriores, e Ricardo Vélez Rodríguez, da Educação.

Com essa penetração da anticiência na mais alta esfera de governo do quinto maior país do mundo, não há limites para os prejuízos à integridade e à reputação de uma nação inteira. O Presidente e seu chanceler insistem em afirmar que o nazismo era de esquerda, mesmo sendo refutados por autoridades internacionais. Toda a cúpula do governo produz falsidades, desde a época das eleições, contribuindo com uma capciosa alternativa aos fatos.

Existe uma indústria da multa por parte dos órgãos de preservação ambiental, a oposição financiou e institucionalizou o chamado “kit gay”, devemos combater o marxismo cultural nas escolas, grande parte da pesquisa científica está em iniciativas privadas. Essas e outras falácias, emitidas pelo próprio Bolsonaro, servem para construir uma narrativa conspiratória e legitimar uma postura agressiva contra certos grupos, como podemos observar no tratamento dado à indígenas, ativistas, professores e pesquisadores, no atual governo.

Devemos nos atentar, de forma vital, à precarização da produção científica no Brasil. A desvalorização e a falta de investimento, além dos cortes de verba na área, estão minando um dos campos mais essenciais para o desenvolvimento do País. Esse quadro desfavorável somado à disseminação da lógica anticiência anuncia tempos sombrios para o Brasil.

A primeira imagem do buraco negro representa uma conquista monumental para a pesquisa no mundo todo. Um esforço que mobilizou dezenas de pesquisadores durante um árduo processo de tentativas e erros. A pesquisa serve para que ideias sejam elaboradas e desenvolvam, em última instância, um conhecimento útil para a sociedade. Como pode ser tão desvalorizada ou pior, deslegitimada?

As notícias falsas já avançaram bastante e hoje encontramos dificuldade em combatê-las. Já a anticiência ainda parece ser motivo de piada. Entretanto, ambas orbitam um dos grandes desafios do século XXI: a pós-verdade. Esse fenômeno permite que evidências factuais tenham menor influência do que apelos a emotividade e crenças pessoais.

Sendo assim, os seres humanos, depois de séculos e mais séculos de evolução científica e desenvolvimento tecnológico, estão deliberadamente regredindo. Um conteúdo que não passa por qualquer método científico, ou seja, não encara os procedimentos presentes na produção de qualquer ciência, não pode ser difundido como verdade. Afinal, nenhuma concepção de saber se faz através de mera abstração, a não ser a ficção.

Se a vida arde sem explicação, igual à letra de Segundo Sol, a ciência está aí para desvendá-la. A Humanidade não pode continuar rejeitando a forma especializada do saber e optar pelo caminho da desinformação. Há de se blindar a aderência às contrapartidas ilusórias feitas sob medida para ludibriar uma massa de insatisfeitos. A legitimidade do conhecimento está à mercê. Hoje em dia, ela depende da boa vontade do freguês para que, em um ciclo entorpecente e perigoso, ele tenha sempre razão.

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Carolina Pinheiro
GIROSCÓPIO

Internacionalista, mestre em Ciência Política, escritora e sonhadora profissional.