Criminalização da LGBTfobia e o perigo das intervenções do Judiciário

O que separa uma suposta conquista jurídica de uma futura derrota democrática

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6 min readJun 1, 2019

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#PraCegoVer: Jovens militantes da causa LGBTQ+ estendem bandeirão em frente ao Supremo Tribunal Federal. (Reprodução: Agência Senado).

Por Ana Paula Henriques

Na próxima quarta-feira (05), o Supremo Tribunal Federal (STF) dará continuidade ao julgamento das ações movidas pela Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transgêneros e Intersexos (ABGLT) e pelo Partido Popular Socialista (PPS). Quem se espantou com a repentina decisão da Corte em enquadrar a homofobia e a transfobia na lei de racismo, talvez não saiba que tais pedidos já tramitam no Judiciário desde 2012. Entretanto, estamos longe de comemorar tamanho acontecimento. Se já não fosse grave o bastante termos apenas onze ministros decidindo sobre temas de extrema relevância para um país inteiro, agora esse pequeno grupo de pessoas está recebendo apoio para criar leis penais.

De acordo com o que aprendemos, ainda no Ensino Fundamental, existem três poderes: o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. Cada um possui sua função e eles estão subordinados entre si, sem qualquer sobreposição de autoridade. Na medida em que o STF interpreta, de forma ampla, que atos discriminatórios contra pessoas LGBTQ+ podem ser entendidos como racismo e, por consequência, abrem margem para penalizar criminalmente os responsáveis, ele está criando a possibilidade de punir alguém por uma conduta que não está descrita em lei. A gravidade disso pode passar despercebido a olhos mais leigos, mas quando nos atentamos à avalanche conservadora que nos engole e a permanente seletividade da justiça brasileira, percebemos que criminalizar pode não ser a melhor das estratégias.

De acordo com o rito, o STF deve verificar se o Legislativo realmente está se omitindo em relação ao tema tratado — se estiver, o Supremo então determina um prazo para que criem uma lei efetiva. Ao passo que o STF deve decidir uma forma temporária de aplicação de lei para que se resolvam aqueles processos. No caso dessa semana, ficou definido que os crimes de homofobia e transfobia seriam interpretados pela Lei 7.716/89, que é a norma que prevê o crime de racismo. Essa decisão foi tomada de maneira provisória enquanto o Congresso, de maneira autônoma, não edita seu texto e nem produz uma nova lei.

Pelo entendimento da maioria dos ministros do Supremo, está tudo bem utilizar a Lei 7.716 para configurar o crime contra homossexuais e transexuais, entretanto, nenhum desses dois enunciados perpassa pela letra da lei. Nela consta:

“Art. 1º Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.”

Sendo assim, não há nada sobre gênero ou orientação sexual. Mas qual é o problema em criminalizar algo que sabemos que é errado? A chave da questão é: a lei maior do País, vulgo Constituição Federal, tem como um dos seus fundamentos o princípio da reserva legal. Ele significa que ninguém pode ser punido por conduta que não esteja descrita em lei. E o guardião dessa Constituição é, ninguém mais ninguém menos, que o STF — ou seja, quem deveria proteger esse princípio constitucional, está de fato distorcendo sua aplicabilidade e pior, interferindo em uma função de outro poder, o Legislativo.

Apesar de os brasileiros terem criado, nos últimos anos, uma afeição pervertida pelo Judiciário, atribuindo a ele uma função de luz no fim do túnel, devemos lembrar que quem legisla, ou seja, quem cria leis, é o Congresso Nacional. Quando se abre o precedente para esse tipo de “exceção”, a sociedade fica vulnerável a situações futuras. Afinal, o STF é a maior e última instância do Judiciário, não há ninguém acima deles.

Para ingressar nesta Corte, só existe o caminho da indicação política, ou seja, não há qualquer tipo de intervenção popular. Fica a critério do Presidente da República a escolha de novos ministros que, por sua vez, tendem a ficar eternamente gratos, digamos assim, pelo cargo vitalício e tão poderoso.

Diferente desse sistema, se dá a escolha do Congresso, já que Deputados e Senadores são eleitos e dependem, de maneira integral, do voto popular. Resumindo: no mínimo, existe a possibilidade de se renovar periodicamente. A criação das leis importa demais para ficar a cargo de pessoas que não foram escolhidas para nos representar. É aí que mora o perigo de autorizar a possível condenação por um crime que não se encontra descrito em lei. Por mais que a Câmara e o Senado tenham sido tomados por uma onda conservadora, ainda contamos com diversos parlamentares que se colocam contrários aos retrocessos que nos têm sido apresentados.

Vamos imaginar que, em um futuro não tão distante, nos encontramos nesse mesmo cenário, mas com o atual Ministro da Justiça, Sérgio Moro, sendo membro do Supremo. Será que, levando em consideração seu “pacote anticrime”, podemos fazer suposições sobre futuras analogias defendidas por ele?

Assim como ocorria na Alemanha nazista, o direito penal pode acabar sendo um grande reflexo dos anseios da população, ao invés de ser o último recurso a ser utilizado quando falamos em poder incriminador do Estado. Ainda que haja alguns critérios para dizer se uma conduta é ilícita, não há como dissociar as criminalizações de possíveis buscas por “justiça”. No entanto, o conceito de justiça é extremamente relativo.

Embora saibamos que nosso Legislativo é omisso e que realmente faltam leis para garantir diversos direitos, a criminalização deve ser encarada como o caminho menos efetivo. Podemos discutir, como grande exemplo, o próprio crime de racismo, que contribuiu muito menos para o combate do racismo do que se esperava. Para que pudéssemos ver, de fato, ações efetivas, foi necessária a criação do Estatuto da Igualdade Racial e das cotas raciais, exemplo de uma importantíssima política pública. No entanto, ainda sim, raramente vemos pessoas sendo punidas por esse crime, uma vez que a Justiça é — e sempre foi — seletiva.

Ao falar sobre seletividade, não nos direcionamos a profissionais ou entidades específicas, estamos falando do todo. Quando temos, sem qualquer justificativa, um carro fuzilado com mais de 200 tiros no subúrbio do Rio enquanto uma mulher branca e moradora da zona sul sai ilesa de uma perseguição com policiais, podemos constatar que as condutas discriminatórias adotadas já se tornaram intrínsecas ao processo. E por isso, qualquer modificação legislativa que vá de encontro a essas situações deve passar por uma discussão pedagógica, que busque retirar tanto do Judiciário quanto do Executivo, os seus pré conceitos e predileções.

Depositar nossas esperanças em uma Justiça punitivista, ou seja, que encontra nas punições o meio mais bem sucedido de corrigir condutas, somente nos aproxima dos discursos de ódio que tanto rechaçamos. Criminalizar algo é querer que mais pessoas sejam presas e que cadeias fiquem ainda mais lotadas. Embora não acredite que as pessoas condenadas por esses crimes — que podem, inclusive, ser enquadrados em injúria — possam ser sentenciadas à prisão, o fato de acharmos que isso pode ser a solução, é algo preocupante.

Sem uma justiça combativa e uma preocupação sincera com políticas públicas, continuaremos a ser o país que mais mata LGBTQ+, da mesma forma, que continuaremos a ser um dos países que mais encarcera. Não podemos dar forças para uma justiça que mata em sua omissão e também mata quando atua.

É importante que não nos deixemos esquecer em qual lado estamos. Por mais que essa lei tenha sua origem na luta do movimento LGBTQ+, devemos frisar que ela não pode ser tachada como “feita para os gays”, já que pode ser utilizada por pessoas de fora da comunidade que também venham a sofrer com a crueldade do preconceito. Um exemplo recente foi a professora Deborah Lourenço que foi agredida verbalmente, no Centro do Rio de Janeiro, ao ser confundida com um transsexual, por conta de sua queda de cabelo em decorrência do tratamento que realizava ao enfrentar um câncer.

A nossa sede em punir homofóbicos e transfóbicos nos fez tapar os olhos para o crime criado pelos onze Ministros do Supremo Tribunal Federal. Ainda vivemos em uma democracia e, para que ela funcione de forma harmônica e minimamente justa, devemos respeitar os ritos.

Quando o Estado entende uma violência como intolerável, ele a criminaliza; todavia, no mundo ideal, isso viria acompanhado de políticas públicas e debates significativos — não empurrando goela abaixo uma falsa impressão de que todas as opressões podem ser interpretadas genericamente. Logo, devemos nos perguntar, a custo do quê ou de quem essa criminalização está sendo comemorada?

Esta análise não está buscando impor um discurso abolicionista, tampouco mitigar a importância do evento. Na verdade, a intenção é construir um debate angustiado e humanizado sobre a efetividade dessas ações e suas repercussões para nossa sociedade. Porque, infelizmente, a criminalização no Brasil só serve pra prender negros e pobres. Os endinheirados, bem ou mal, continuarão a pagar suas indenizações e/ou prestarão “serviços à comunidade”. Mas quem se importa? Aparentemente, não há problemas em andar um passo para frente e dez para trás.

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