Todo cuidado é pouco ao falar sobre a crise na Venezuela

O caos instalado no país para além da análise à primeira vista e o problema do posicionamento automático

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6 min readMay 4, 2019

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#PraCegoVer: Manifestantes da oposição encaram blindados militares enviados pelo governo para conter o movimento popular convocado por Guaidó. (Reprodução: Carlos Garcia Rawlins/Reuters).

Por Carolina Pinheiro

Longe de mim fazer o desastroso papel do isentão ou de quem despolitiza os debates. Também não me compadeço por narrativas que se dizem imparciais, afinal, nenhum conhecimento é neutro. Entretanto, a acirrada polarização que enfrentamos no Brasil dos últimos anos traz alguns males para a vida política e acaba transbordando maniqueísmo para todo tipo de análise.

Quando tratamos de outro país, estamos olhando para outra realidade histórico-social, outro cenário econômico, outra complexidade cultural. Sendo assim, todo cuidado é pouco ao falar sobre a crise na Venezuela. A questão é que antes mesmo de terminar o nome da nação com a maior reserva de petróleo no mundo, você já deve anunciar se participa do movimento contra o atual governo ou não. E não dá para ser oposição e não ser peão do imperialismo. A ponderação anda sendo confundida com isenção.

No início do ano, Juan Guaidó se autoproclamou presidente interino do nosso país vizinho e mais de cinquenta estados o reconheceram como tal. Na última terça-feira (30), ele convocou um levante para derrubar o Presidente eleito, Nicolás Maduro. Por sua vez, o sucessor de Hugo Chávez retaliou as manifestações com forte repressão policial, que renderam cenas fortes, em especial aquelas com blindados avançando contra cidadãos. Enquanto isso, também acontecia um protesto pró-Maduro, obviamente sem represália. Mas como nós podemos nos posicionar diante desses fatos?

A mídia tradicional nos martela uma resposta imediata diante da crise e seus desdobramentos atuais: Maduro = vilão, chavismo = mal, Guaidó = herói. Porém, uma análise mais profunda sobre as origens dos problemas venezuelanos traz à tona pontos que muitas vezes passam despercebidos por veículos tradicionais. No momento em que o governo atual acusa os Estados Unidos de imperialistas e denunciam seus interesses político-econômicos por trás da fachada de intenções benevolentes e liberais, não há como negar que exista essa possibilidade.

Não é de hoje que os estadunidenses mantêm sua hegemonia no sistema global através da exploração capitalista e de seu braço ideológico: o discurso democrático. Sua lógica de libertação serve como pretexto para intervir em nações que dispõem de grandes reservas de combustível fóssil, como vimos no caso do Iraque, em 2003. Além disso, desde a morte de Chávez, em 2013, os norte-americanos vem pressionando a Venezuela em função do suposto autoritarismo de seu governo, diminuindo fluxo de investimentos e impondo sanções econômicas.

Nos últimos quatro anos, o cerco financeiro foi se fechando e provocou o agravamento da situação já crítica de abastecimento da população. Um estudo do Centro Estratégico Latino-Americano de Geopolítica (CELAG) demonstra que o embargo dos Estados Unidos entre 2013 e 2017 geraram um prejuízo de 350 bilhões de dólares e o fechamento de 3 milhões de postos de trabalhos na Venezuela. Sem falar nos bloqueios mais ferrenhos de medicamentos e alimentos, após a eleição de Donald Trump.

É verdade que o impacto da baixa do preço de petróleo no mercado internacional afetou diretamente a economia venezuelana que dependia, de forma primordial, da exportação da commodity. Porém, o relatório da CELAG aponta que se o cenário do país estivesse em condições normais, ou seja, sem o embargo, a queda ainda que drástica dos barris teria afetado menos da metade dos postos de trabalho, por exemplo. A partir disso, o estudo conclui que os Estados Unidos intencionalmente produziu o caos na Venezuela, por meio dos bloqueios, para poder executar seu querido papel de herói apoiando um golpe contra o governo local e se infiltrando de vez no mercado petrolífero do país.

#PraCegoVer: Infográfico sobre as consequências das sanções norte-americanas para o povo venezuelano. (Reprodução: Brasil de Fato).

O controle financeiro e os embargos geraram desabastecimento. O desabastecimento gerou a fome. A fome gerou o êxodo venezuelano. O legado chavista havia provocado aumento do PIB, da renda per capita, da expectativa de vida e do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Também ampliou o acesso à saúde, educação e lazer, além de ter reduzido a miséria e a mortalidade infantil. Hoje, a Venezuela está sob “emergência humanitária complexa”, segundo a ONG Human Rights Watch e apresenta um número de migrantes pelo mundo de 3,4 milhões, segundo as Nações Unidas.

Dito isso, já podemos oficializar nosso registro no Partido Socialista Unido da Venezuela e queimar a bandeira ianque? Não é bem assim. Sendo alvo de diversos escândalos de corrupção e assumindo uma postura militarista indigesta desde o princípio, o chavismo cometeu sérios erros ao longo de quase vinte anos no poder. Seja falhando ao diversificar a indústria nacional, para que diluíssem tanto a dependência da exportação de petróleo quanto a da importação de bens básicos para o consumo do povo; seja priorizando pagamentos da dívida externa ao invés da provisão de produtos vitais para a população.

Além disso, mesmo nos tempos prósperos, o governo deixou de fazer investimentos na própria indústria do petróleo, além de alocar os recursos de forma improdutiva. Quando o preço do barril caiu gerando déficit na balança comercial, a solução governista foi imprimir mais dinheiro para cobrir o rombo nas contas públicas, o que levou à hiperinflação e contribuiu para o desabastecimento. Ainda houve a tentativa de fixar os preços para conter a situação, o que provocou a quebra de indústrias e comércios nacionais remanescentes. Assim, a dependência de importações para todo tipo de insumo, que já era profunda, só aumentou.

Inclusive, mesmo que os críticos ao governo venezuelano curtam atribuir suas falhas ao socialismo, o fazem de forma equivocada. Hugo Chávez implementou um governo de esquerda, popular e anti-imperialista — mas não socialista. Nem sequer desenvolvimentista. O capital financeiro gerado pela indústria petrolífera sempre foi o protagonista da economia devidamente aberta da Venezuela. Algumas estatizações e programas sociais não implodiram o quadro burguês que ostentou lucros exorbitantes na época próspera do petróleo. Os privilégios dos grandes empresários, banqueiros e membros da alta cúpula militar nunca foram sequer ameaçados.

Em termos de direitos humanos, entre abril e agosto de 2017, 5.051 pessoas foram presas de maneira arbitrária pelo governo venezuelano. De 124 mortes em protestos investigadas, 37% atribuem-se às forças do regime. Esses e outros dados alarmantes corroboram para o entendimento de que o nível de democracia na Venezuela está em declínio. Bem como as denúncias de perseguição de adversários e membros da imprensa que manifestam oposição. Ainda que os Estados Unidos sejam hipócritas e usem a liberdade de expressão e de imprensa como pretextos, não há como ignorar as evidências de que a administração chavista adota uma postura autoritária — vale ressaltar a sua significativa intimidade com o militarismo, desde o início.

Maduro e o lado sombrio do governo chavista possuem participação direta na situação precária da política e da economia venezuelana atual. As sanções econômicas estadunidenses e seus efeitos colaterais tiveram impacto grave na saúde financeira do país e foram determinantes para que se instalasse a maior crise humanitária que seu povo já vivenciou. Sendo assim, a situação é delicada e requer mais do que um simples posicionamento acerca dos poderosos de um lado ou o do outro. Não dá para abraçar tudo de nenhuma ponta.

Existe sim espaço para debate sobre os processos históricos e contextuais, por exemplo, como aconteceu isso ou por que aconteceu aquilo. Mas encarar essa conjuntura mais do que complexa e exprimir um simples posicionamento automático, por alinhamento ideológico ou por falta de conhecimento do tema, ultrapassa a irresponsabilidade intelectual, chegando a ser um desrespeito com quem está lá sobrevivendo apesar de tudo.

Ser pró Maduro ou pró Guaidó diz mais sobre seu nível de confiança na mídia tradicional do que qualquer coisa. No fim, nosso alinhamento deve estar ao lado do povo, aquele que sofre todos os dias com a violência produzida pelas tensões da crise. Se o governo fere os direitos humanos na repressão, o imperialismo norte-americano está ávido para aprisionar o país numa condição perene de subdesenvolvimento. O que há para defender?

O teto de vidro do brasileiro deveria significar cautela suficiente na hora de opinar sobre o quadro vizinho. Não só já enfrentamos duas ditaduras violentas como sofremos hoje em dia com a postura entreguista do Presidente. É preciso entender que figuras carismáticas ou dogmas acalorados não importam se no fim do dia o povo sangra. Novamente: todo cuidado é pouco ao falar sobre a crise na Venezuela.

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