Das Galeras à Família: o caso Wallace e a criminalidade em Manaus

Como o caso Wallace Souza esteve presente no cotidiano da segurança pública de Manaus, mesmo após a morte do ex-deputado

Giroscópio
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6 min readJun 29, 2019

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#PraCegoVer: Wallace Souza aparece apresentando seu programa (Canal Livre) em vários televisores.

Durante o final dos anos 90, a cidade de Manaus, capital do Amazonas, existiam as chamadas “galeras”, que eram gangues formadas por criminosos locais, como a maior preocupação da segurança pública do município.

Em 1996, o ex-policial e jornalista Wallace Souza estreou na TV Rio Negro o “Canal Livre”, programa que exibia casos policiais, investigações, repressão ao tráfico e ainda tinha atrações culturais. Tudo isso no horário do almoço. O apresentador foi o primeiro repórter do programa, que mostrava o crime — ainda desorganizado — na cidade de forma crua, cobrando dos governantes soluções para frear o aumento da violência. O sucesso era tanto que a atração superava a Rede Globo em índices de audiência ao meio-dia. Diante do sucesso do programa, o apresentador convidou dois dos seus irmãos, Carlos e Fausto, para apresentar a atração do seu lado.

A população da cidade procurava a produção do seu programa para fazer denúncias sobre crimes que estavam acontecendo na cidade. Wallace Souza se tornou uma referência no combate ao crime em Manaus. Sendo assim, o apresentador decidiu representar o povo no Legislativo. Em 1998, candidatou-se ao cargo de Deputado Estadual e foi eleito com o maior número de votos da história do Amazonas, com quase 52 mil. E o sucesso se repetiu em 2002 e 2006. Devido à sua fama como comunicador e sua intensa batalha contra o crime organizado, sua carreira política parecia estar no auge. Os rumores eram de que o deputado se tornaria o próximo Secretário de Segurança do estado, ou até mesmo Governador.

No entanto, tudo começou a desmoronar em 2008, quando o ex-policial Moacir Jorge Pessoa da Costa, conhecido como “Moa”, foi preso. Na delegacia, Moa acusou Wallace e seu filho, Raphael Souza, de comandarem uma organização criminosa que ordenava a execução de pessoas para obter novos casos a serem apresentados no Programa Canal Livre. Os principais alvos eram traficantes, que eram assassinados para que a quadrilha dos Souza controlasse o tráfico local.

Uma força-tarefa foi criada para investigar o caso. Durante os anos de 2008 e 2009, o grupo, comandado pelo Secretário de Inteligência Thomaz Vasconcelos, e o delegado Divanilson Cavalanti, reuniram evidências que buscavam mostrar que o deputado Wallace Souza era o chefe da organização criminosa. O caso movimentou o cenário político local. Acusações de ambos os lados foram feitas. O apresentador dizia nunca ter conhecido “Moa”, mas uma foto dos dois na piscina de sua casa aumentaram as suspeitas. Em abril de 2009, um mandado de busca e apreensão contra seu filho, que morava com ele, fez com que a polícia encontrasse mais de 200 mil reais em espécie, além de milhares de dólares e uma lista escrita à mão, com nomes de traficantes mortos nos últimos anos.

Com um grande número de evidências incriminando Wallace e seu filho, a Assembleia Legislativa do Amazonas decidiu cassar o mandato do deputado no dia 1º de outubro de 2009. Quatro dias depois, foi decretada a prisão preventiva do apresentador, que fugiu e se entregou à polícia apenas no dia 9. Sem imunidade parlamentar, o agora ex-deputado poderia ser julgado pelos supostos crimes. No entanto, isso nunca aconteceu, já que Wallace Souza faleceu antes do julgamento, no dia 27 de julho de 2010, em decorrência de uma parada cardíaca. Sendo assim, apenas “Moa”, Raphael e Mario Pequeno, um dos seus ex-seguranças, foram julgados no fim de 2010. Somente o filho de Wallace foi condenado, pelo assassinato do traficante Cleomir Pereira Bernardino, conhecido como “Caçula”.

Essa história foi retratada na série ‘Bandidos na TV’, que estreou na Netflix no último dia 31 de maio. Os 7 episódios mostram a ascensão e a queda do ex-apresentador e deputado, além de mostrar o panorama da criminalidade na capital amazonense. De 2009 pra cá, entretanto, muita coisa mudou. O crime em Manaus passou a ser organizado, e alguns personagens do caso Wallace desempenham papel importante para entender esse processo.

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Em 2008, o criminoso Alessandro da Silva Coelho, conhecido como “Bebetinho da 14”, foi morto a tiros quando voltava de um show próximo ao Sambódromo de Manaus. Alessandro era filho de Luiz Alberto Gomes Coelho, o “Bebeto da 14”, considerado um dos maiores e mais respeitados traficantes da cidade de Manaus. Bebeto prometeu vingar a morte de seu filho, sentenciando com a morte quem estivesse envolvido no crime. O maior suspeito do assassinato era Raphael Souza. No entanto, antes que Bebeto pudesse cumprir o prometido, foi executado no terraço de sua casa por dois homens, apenas sete meses após a morte de Bebetinho.

A força tarefa que investigava os crimes de Wallace Souza o apontou como principal suspeito, devido ao envolvimento de seu filho no caso. O deputado, entretanto, negou participação no crime, e associou o acontecido a disputa pelos pontos de venda de drogas na cidade. E ainda afirmou, na Assembleia Legislativa, que todos sabiam quem era o verdadeiro mandante do crime: Zé Roberto da Compensa.

Zé Roberto era conhecido na cena local por ser líder de um novo grupo criminoso, fundado em 2007, chamado Família Do Norte (FDN). Naquela altura, ainda eram as galeras que comandavam o comércio de drogas na região. Porém, a disputa pelo tráfico no município se intensificou, e uma série de mortes ocorreram no período em que o caso Wallace era o principal assunto da imprensa e da Secretaria de Segurança. Com o julgamento dos suspeitos, as atenções se voltaram para o combate ao crescimento de grupos criminosos, que, no entanto, já haviam tomado boa parte do controle do comércio local.

A década de 2010 marcou a consolidação da FDN no estado do Amazonas, como também na região norte do país. Hoje, ela é o terceiro maior grupo criminoso do País, perdendo apenas para o Comando Vermelho (CV) e o Primeiro Comando da Capital (PCC). Esta última, fundada nos anos 90 no estado de São Paulo, viveu uma grande expansão durante a década, chegando até outras regiões do país. Em função disso, disputa pelo controle do tráfico no Norte se intensificou entre PCC e FDN, gerando um aumento massivo da violências nos estados.

Em 1º de janeiro de 2017, membros da FDN e do PCC entraram em confronto no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), em Manaus, resultando na morte de 56 detentos. Entre eles, estava o principal personagem do caso Wallace, “Moa”, que foi decapitado e queimado vivo pelos integrantes da Família. O número de baixas foi o maior desde o massacre do Carandiru, em 1992, onde policiais militares abriram fogo contra detentos na Casa de Detenção de São Paulo. Em maio desse ano, ocorreu novamente um massacre. Foram mortos 55 presos no Compaj, alguns deles enquanto recebiam visitas de seus familiares.

De acordo com dados do Mapa da Violência, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o Amazonas possui uma das maiores taxas de homicídio do Brasil (41,2 a cada 100 mil habitantes), e viu, assim como toda a região Norte, seus índices aumentarem exponencialmente nos últimos 10 anos (95,3% em relação à 2007). A ascensão do crime organizado no estado é um dos motivos para tal, haja visto que a disputa por pontos de comércio de drogas se intensificou, além do combate repressivo do estado para esse tipo de prática. Se a Secretaria de Segurança do Amazonas, há 10 anos, precisava se preocupar “apenas” com as galeras e com uma possível relação de um deputado estadual com uma organização criminosa, que criava crimes para gerar audiência, hoje, eles precisam lidar com um aparato organizado e poderoso, capaz de fazer grandes movimentos, rebeliões e atuar em outros estados e países.

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