Ensinando a regredir

A crítica de Eduardo Bolsonaro à Paulo Freire, patrono da educação brasileira, reconhecido internacionalmente por sua contribuição à educação por meio da pedagogia crítica.

Giroscópio
GIROSCÓPIO
6 min readApr 27, 2019

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#PraCegoVer: Olavo de Carvalho, sentado, gesticula para a câmera, com uma caneta na mão direita e um charuto na esquerda. (Reprodução)

Por Lucas Gomes

No último dia 13, o deputado estadual de São Paulo, Eduardo Bolsonaro, saiu em defesa de seu “guru intelectual”, Olavo de Carvalho. Para isso, utilizou o twitter para argumentar que, diariamente o legado de seu mestre é mostrado pelos membros da direita. E, para fins comparativos, utilizou a figura de Paulo Freire para questionar a herança que a esquerda havia deixado para a educação do País.

O mentor dos Bolsonaro se intitula filósofo, mesmo sem possuir diploma. Seu nome ficou conhecido, primeiramente, por sua atuação na astrologia nos anos 1980. Sua popularidade dentro da direita brasileira veio apenas no final da década passada, quando começou a ministrar um curso online de filosofia. Seus alunos eram dos mais variados tipos: professores, advogados, diplomatas, adolescentes. Em menos de uma década de curso, seus aprendizes conseguiram chegar à Presidência da República e a outros cargos dentro das maiores instituições do Brasil.

A escalada ao poder dos seus mentorados significou, de fato, um novo episódio para a educação brasileira. Para ser o novo ministro dessa pasta, Jair Bolsonaro indicou Ricardo Vélez Rodríguez. O colombiano, de 75 anos, foi indicado pelo próprio Olavo. Nos primeiros 90 dias à frente do cargo, algumas de suas decisões incluíram a gravação de crianças cantando o hino nacional nas escolas, a suspensão da avaliação da alfabetização, além da criação de uma comissão de avaliação do ENEM, com o poder de vetar questões da prova. Houve também declarações marcantes na trajetória do ministro, como a afirmação de que “Universidade para todos não existe”.

Após polêmicas declarações sobre a sua falta de habilidade gerencial e uma participação medíocre na sabatina organizada pela Câmara dos Deputados — que visava entender quais os projetos do ministério -, Vélez perdeu apoiadores, entre eles, o próprio mentor. Foi demitido no dia 8, e para o seu lugar foi indicado outro nome querido de Olavo, Abraham Weintraub. O novo ministro havia afirmado em 2018, no canal oficial do atual Presidente no youtube, que o Brasil não precisa aumentar gastos com educação. Em outro vídeo, fala sobre “aplicar a teoria de Olavo de Carvalho” para lidar “democraticamente com o marxismo cultural”.

Esse termo, utilizado para explicar um possível plano de doutrinação marxista nas escolas e nos meios de comunicação, é apreciado pelos membros da direita brasileira. Esse plano teria como objetivo desmantelar as instituições tradicionais, que são constituídas pelo homem branco ocidental. Segundo os defensores dessa teoria, as formas de executar esse projeto são através da liberdade sexual e de gênero, feminismo, igualdade racial, multiculturalismo, entre outras. Para eles, uma educação transgressora, que vai além do comportamento tradicional em sala de aula, também é uma forma de propagação do marxismo cultural.

Uma vez que Paulo Freire se consagrou no campo da pedagogia crítica mundial, seu trabalho se tornou alvo dos conservadores. O educador, que em 2012 foi nomeado patrono da educação brasileira, ficou conhecido ao aplicar seus estudos pedagógicos no interior do Rio Grande do Norte, onde em 45 dias ensinou 300 adultos a ler e escrever, no ano de 1963. Seu trabalho foi reconhecido pelo governo de João Goulart, que na época fazia reformas de base e decidiu incluir o projeto de Freire no Plano Nacional de Alfabetização, que foi extinguido pelo governo militar após o golpe de 1964. Além disso, o seu livro mais famoso (Pedagogia do Oprimido), é o mais aclamado dentro da pedagogia crítica. E, na área de humanidades, sua obra é a terceira mais citado no mundo em estudos acadêmicos. Sendo assim, o argumento dos defensores da existência desse plano, é que os governos de esquerda adotaram os preceitos deixados em seus estudos com o objetivo de manutenção de poder.

Outros países, no entanto, não parecem se preocupar com isso e seguem as orientações deixadas em seus trabalhos. Na Finlândia, existe desde 2007 um centro dedicado a discutir sua obra. Na Suécia, há um monumento público para o educador. Até mesmo nos Estados Unidos, país-modelo para os entusiastas da extrema-direita do Brasil, a metodologia de Freire está presente, como é o caso da Revere High School, avaliada como a melhor instituição pública de Ensino Médio dos Estados Unidos em 2014. Curiosamente, todas estão à frente do Brasil no ranking mundial de ensino, o PISA. Na última avaliação, o País ficou na 63ª posição, enquanto o pior colocado dos citados (Estados Unidos) ficou em 31º lugar.

A pedagogia crítica de Paulo Freire busca a emancipação do indivíduo, seja ele professor ou aluno. A formação de ambos deve levar ao desenvolvimento de uma consciência para analisar a realidade social e histórica com o objetivo de transformação. Sendo assim, a educação também é uma forma de ação política. Curiosamente, Bolsonaro declarou no último dia 9 seu desejo que as novas gerações não se interessem por política. Elas devem “aprender coisas que possam levá-las para o espaço” — afirmou o Presidente.

Nas eleições de 2018, Bolsonaro venceu por uma grande margem de votos em relação ao segundo colocado, Fernando Haddad — ironicamente, um professor. As pesquisas evidenciaram uma preferência de homens brancos, de classe média alta e grau de escolaridade alto para o candidato do PSL. Esse mesmo grupo defende com unhas e dentes o desmantelamento do marxismo cultural, com a manutenção dos bons costumes e o fim da doutrinação nas escolas. Entre 2002 e 2016, o número da população que concluiu o Ensino Médio subiu de 57 para 74%. E, com o auxílio de programas de bolsas de estudo — como o ProUni — e ações afirmativas, o número de pessoas no Ensino Superior também aumentou durante o período da esquerda no poder, subindo de 11 para 18%.

Atualmente, estou lendo o livro ‘Ensinando a transgredir: a educação como prática de liberdade’, de bell hooks, que aborda assuntos relacionados ao feminismo negro e racismo, além é claro, de educação. Durante todo o livro, a educadora demonstra como encontrou em Paulo Freire um instrumento para desenvolver uma prática de ensino libertadora, onde professor e aluno possuem o direito — e obrigação — de transcender para além da sala de aula. Em um dos capítulos do livro, hooks expõe o mito da criação de uma cultura difundida onde não há desigualdades, e as tentativas das minorias de transformar a estrutura gera uma crise onde os brancos (principalmente homens) são os maiores prejudicados. E completa:

“Quando o consumo cultural coletivo da desinformação e o apego à desinformação se aliam às camadas e mais camadas de mentiras que as pessoas contam em uma vida cotidiana, nossa capacidade de enfrentar a realidade diminui severamente, assim como nossa vontade de intervir e mudar as circunstâncias de injustiça.”

Sendo assim, o clã Bolsonaro, seguidores fiéis do olavismo, possui em seus ensinamentos um projeto de poder. Esse, aliado a um forte incentivo ao combate de uma educação que visa pela liberdade, coloca o futuro do ensino no Brasil em cheque. Ao criticar Paulo Freire é demonstrado um grande desconhecimento — de novo — por parte de um dos filhos do Presidente. Suas contribuições como educador são lembradas diariamente, servindo de exemplo para projetos educacionais de sucesso. O Brasil, onde o educador nasceu, não conseguiu até hoje seguir seus preceitos, e ainda sim o critica. Estamos caminhando para um destino onde deixaremos de lado os ensinamentos de um mestre em pedagogia, enquanto a educação cai nas mãos de um charlatão que se diz filósofo, mesmo sem diploma de filosofia. Com isso, o ensino deixa de ser transgressor. Bolsonaro, Olavo de Carvalho e seus seguidores estão, cada dia mais, ensinando a regredir.

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