Mangueira triunfa contando a história que a história não conta

A importância da vitória da escola de samba através de um enredo brilhantemente questionador

Carolina Pinheiro
GIROSCÓPIO
6 min readMar 23, 2019

--

#PraCegoVer: Imagem da conclusão do desfile da Mangueira com foco na bandeira do Brasil estampada com o lema “Índios, Negros e Pobres”. (Reprodução: Antonio Scorza / Agência O Globo).

“Mulher negra… Que sofre e ampara, que luta e chora…”

Assim entoava o canto de mulheres negras no palco da manifestação pela memória de Marielle Franco, no dia em que completou um ano de sua brutal execução. Eu estava lá, na multidão, e não pude sentir nada menos do que tristeza e alívio. Tristeza pelo óbvio, mas alívio pela boa surpresa: protagonismo. Diferente de outros tantos atos da militância carioca, este deu voz a quem realmente deveria. Feministas. Negros. Lésbicas. Trans. Periféricos. Me senti orgulhosa de cada apresentação de dança, canto e poesia — afinal, quem estava honrando a vereadora com arte e resistência eram todos aqueles que foram motivos de sua luta.

Não é todo dia que encontramos representatividade em um país onde a concentração de poder está em mãos brancas, ricas e masculinas. Ainda que a pauta seja romper com esse status quo e promover a inclusão, quem vocaliza o grito de ordem tende a ser alguém do grupo poderoso — seja qual for o motivo da manifestação em questão. A forma como a nossa história é contada contribui bastante para esse fenômeno frustrante, uma vez que constrói protagonistas e heróis que não representam o verdadeiro povo brasileiro. E foi justamente essa história para ninar gente grande que rendeu um fantástico Carnaval para a Mangueira este ano, além de intitular o enredo.

A Estação Primeira fez um desfile repleto de críticas às narrativas elitistas e eurocêntricas que contam a história do Brasil marginalizando, de forma injusta, ícones como Antônio Francisco Lisboa, Dandara, Chico da Matilde — e entre eles, Marielle Franco. Para entorpecer nossa noção de identidade como povo e minar a representação da nossa gente, apagam-se figuras revolucionárias, ou qualquer vestígio de que tenhamos lutado por emancipação. Ou então embranquecem as figuras emblemáticas, quando vindas do povo, como acontece com o já citado Aleijadinho, e também com o maior escritor brasileiro, Machado de Assis. Dessa forma, não se representa o povo, na história, nem mesmo quando lutam; e ainda que o mérito seja tão grande que não possa ser contido, a representação vem corrompida.

Por esse motivo que um dos momentos mais marcantes do desfile da Mangueira foi o encerramento de sua passagem pelo Sambódromo. Nele, a escola ostentava um novo modelo da bandeira do Brasil; nas cores verde e rosa e estampada com a frase “Negros, índios e pobres” no lugar do tradicional lema positivista “Ordem e Progresso”. Essa transformação das palavras contidas no maior símbolo do País condensam toda a redenção histórica pretendida pelo enredo. Ademais, sua performance por si só já configura um grandioso feito para a escola, mas a cereja do bolo veio com o título de Campeã do Carnaval de 2019.

As primeiras alas mangueirenses traziam elementos emblemáticos da cultura indígena, junto à uma paleta farta de cores vivas. Em seguida, a avenida foi inundada de símbolos referentes à estética africana. Sempre promovendo as duas linhas étnicas como basilares da construção da cultura nacional e recontando a história a partir dessa perspectiva. O grande mérito do desfile foi, na verdade, produto da sua intenção de restaurar a genuína representação do povo. Ou seja, ao dar representatividade, a Mangueira transformou a própria noção de verdade. Depois de assistir aquele espetáculo, não há como confiar, de forma integral, nos prestigiados da história brasileira. O enredo verde e rosa foi muito bem-sucedido provocando a reflexão sobre o que sempre foi dado como fato consumado.

Resultado de notícias falsas, preconceito e histeria coletiva, as eleições presidenciais do ano passado deixaram uma grande parcela da população completamente desiludida. E se o ódio destilado às minorias conduziu a corrida eleitoral, o que se viu no Sambódromo foi uma vitória ornamentada por exaltação às mesmas. O samba fez vencer quem estava precisando. E é claro que o êxito na avenida tem um gosto singular, pela sua importância. Olhos do mundo inteiro se voltam para a nossa festa todo ano e, dessa vez, viram nossa história desfilar mais verídica que nunca. Se há cinco meses atrás, a barbárie venceu a disputa ideológica, hoje a expressão artística — desprezada pelos tais vencedores — cumpre com louvor seu mais essencial papel, a função crítica. Essa forte construção de uma narrativa positiva em meio à onda de irracionalidade que vivenciamos é música para o brasileiro ouvir. Ou melhor, é samba.

Inclusive, o Carnaval de rua seguiu essa linha politizada e evidenciou a insatisfação de muitos. O que não faltava aos blocos, de todo o País, eram foliões caracterizados com elementos relacionados a laranjas, que remetiam ao escândalo envolvendo a família Bolsonaro e o Partido Social Liberal. Enquanto isso, o Presidente da República quis mostrar para o mundo inteiro, através do Twitter, o quão indecente é a maior festa popular da nação. Nada menos do que o esperado de um líder eleito sob uma plataforma anti cultura, forjada em cima de um vira-latismo travestido de nacionalismo.

Essa tentativa fracassada de desviar a atenção dos ataques bem-humorados e espontâneos rendeu no máximo alguns memes. De certa forma, Jair tentou fazer o que a Mangueira fez: construir uma narrativa para transformar o que se entende por verdade. Malsucedido e mal-intencionado, ele quis distorcer a representação do que se passa no feriado mais comemorado do nosso calendário para vender aquela realidade totalmente comprometida. Já a escola, de maneira honrosa, questionou o que aprendemos como absoluto, mas não reflete quem somos de fato.

Entretanto, no maior clima de representação fiel do povo brasileiro, a festa centenária e legítima não se abalou. Vale destacar que a Verde e Rosa trouxe outros temas sensíveis à polarização absurda que enfrentamos desde outubro. Além da já citada representatividade, a escola denunciou violações aos direitos humanos cometidas durante a Ditadura Militar. A irmã do desaparecido político Stuart Angel, Hildegard Angel, estava como destaque em um carro alegórico que, por sua vez, carregava os dizeres “Ditadura Assassina”. Sendo assim, a Mangueira ter saído vitoriosa com um enredo desses fez ecoar o grito de resistência há meses entalado.

Na terça-feira, 12 de março, as autoridades descobriram quem matou Marielle. Dois dois ex-policiais militares envolvidos com a milícia do estado do Rio de Janeiro estão sendo acusados como principais envolvidos no crime. Nesse dia, Talíria Petrone, a deputada federal fluminense que carrega o seu legado, discursou na Câmara sobre o assunto e salientou que “(…) sem memória, não há verdade. E sem verdade, não há justiça.” Essa frase se relaciona tanto com o contexto do assassinato da ativista de Direitos Humanos, ainda mais quando a pergunta sobre quem mandou matá-la permanece sem resposta, como também diz muito sobre o questionamento levantado pela campeã do Carnaval.

Sem que a memória coletiva do País tome consciência do que realmente se passou para o Brasil ser como nós o conhecemos nos dias atuais, não há verdade. Porque o que foi definido como verdade não é nem honesto, nem real. A história contada pelos conquistadores não deveria ser a nossa. O verdadeiro povo brasileiro é filho dos conquistados. Conquistados esses que resistiram ao máximo e tiveram suas lutas apagadas. Se a deputada está correta, como penso que está, nossa memória deturpada contamina a verdade. Logo, sem ela, somos um Brasil sem justiça.

Enquanto o controle da narrativa oficial dos acontecimentos afastar o próprio povo dos importantes eventos e glórias nacionais, o País permanecerá de ressaca moral. Representatividade importa, ainda mais se tratando de raízes e origem. Espero que o triunfo da Mangueira, uma escola tão tradicional, tão intrinsecamente carioca, de comunidade, de Cartola, de Beth Carvalho, de Jamelão, aliado a uma narrativa ousada dessas, sirva para ensinar mais e mais jovens sobre sua própria história e inspirá-los sobre seus destinos. Que o samba campeão reverbere para continuar desconstruindo os falsos protagonistas e exaltar os heróis de fato. O Brasil precisa fazer justiça — por Marielle, pelos índios, pelos negros e pelos pobres. O Brasil precisa de justiça social.

▶▷▶

E aí? Gostou do texto? Deixe seus claps!

Siga-nos aqui no Medium e no nosso Twitter @Giroscopio_

--

--

Carolina Pinheiro
GIROSCÓPIO

Internacionalista, mestre em Ciência Política, escritora e sonhadora profissional.