Neymar, masculinidade tóxica e cultura do estupro

Como a figura do jogador tido como menino e um escândalo sexual contribuem para reforçar a cultura do estupro no Brasil

Giroscópio
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6 min readJun 8, 2019

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#PraCegoVer: Neymar aparece em primeiro plano com as mãos na cintura, com a camisa da seleção brasileira (Reprodução)

Por Lucas Gomes

O que é ser um homem? — essa pergunta é feita durante o documentário “A máscara em que você vive”, de 2015. Nele, a masculinidade tóxica e suas consequências são colocadas em pauta em uma série de entrevistas, com depoimentos de especialistas e de homens que foram afetados por esse comportamento. Pessoas do sexo masculino que não se adequam a determinado padrão de conduta são rejeitados ou tratados como inferiores, já que apenas o ‘macho-alfa’ seria o modelo aceitável. Assim, chorar é inadmissível, afinal, homem de verdade não chora.

À longo prazo, o escudo criado desde a infância gera consequências profundas no comportamento do homem. As pressões para que ele se torne um ser poderoso diante dos outros gera incontáveis traumas naqueles que simplesmente não desejam se portar dessa forma. Os sentimentos são reprimidos e barreiras emocionais são construídas para limitar qualquer forma de sensibilidade. Expressar sentimentos, como tristeza ou desespero, colocariam o homem em uma posição inferior, onde estão as mulheres e ou os homossexuais. A masculinidade, além de trazer traumas profundos para o homem, também gera consequências para outras pessoas.

No caso das mulheres, além de serem consideradas inferiores e associadas a uma ideia de absoluta fragilidade, em oposição à força masculina, elas são vistas principalmente como objeto. Na infância, estar perto de meninas pode significar fraqueza no círculo social dos garotos. Esse distanciamento gera desconhecimento. Mais tarde, a procura por informações sobre como lidar com as mulheres leva à indústria pornográfica, onde aprendem a normalizar a violência contra o corpo feminino, um mero objeto à serviço do prazer masculino.

No último domingo (02), foi noticiado que Neymar, principal jogador da Seleção Brasileira, estava sendo acusado de estupro. Horas depois, em um programa jornalístico comandado por José Luiz Datena, seu pai declarou que seu filho era inocente e ainda revelou o nome da pessoa por trás da acusação, em rede nacional.

“Não é fácil ser Neymar”, declarou Edu Gaspar, ex-jogador de futebol e atual Coordenador de Seleções da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), após a eliminação na Copa do Mundo de 2018. O jogador, que era chamado de menino Ney na época do campeonato, tem a carreira cercada de polêmicas — e contusões — que o colocam abaixo na prateleira dos grandes craques da história do futebol. A blindagem feita pelos veículos de imprensa, amigos, seu pai e seu treinador na Seleção, Tite, colocam o jogador na posição de vítima. O Presidente da República, inclusive, desejou dar um abraço em Neymar, visto que ele é, segundo suas palavras, apenas um menino passando por um momento difícil.

Na madrugada de sábado para domingo, o menino Ney resolveu se defender por conta própria. Neymar decidiu desmascarar o golpe que supostamente sofreu revelando as conversas que teve com a acusadora. No entanto, em determinado momento do diálogo, a mulher enviou fotos nuas para o jogador. Mesmo tendo ciência disso, ele decidiu expor o conteúdo íntimo nos seus stories, que foram apagados logo em seguida. Segundo o artigo 218-C do Código Penal, a divulgação de fotos íntimas sem consentimento é considerado crime, com pena de 1 a 5 anos de reclusão.

Além de violar a lei, o jogador demonstrou, de forma quase didática, as consequências da masculinidade tóxica, ao realizar o chamado “pornô de vingança”. Em uma tentativa de provar sua inocência em um escândalo sexual, ele divulgou fotos íntimas da mulher com quem estava se relacionando. Vale lembrar que Neymar possui 120 milhões de seguidores no Instagram. A divulgação do conteúdo para seus fãs colocou a vítima em uma espécie de júri virtual, no qual as pessoas decidiram desde quem estava certo até qual a real índole de cada um dos envolvidos. Em uma sociedade onde a cultura do estupro é tão forte, entender que uma mulher tem direito de desistir do ato sexual parece um grande desafio para o senso comum.

Há quem pense que a carreira de Neymar está ameaçada. No entanto, esta não é a primeira — nem será a última — denúncia de violência sexual contra um esportista famoso. Em 2018, Cristiano Ronaldo, atacante do Juventus e eleito várias vezes melhor jogador do mundo, foi acusado de estupro por uma modelo italiana. O crime havia sido cometido nove anos antes, em 2009. O jogador chegou a admitir que a mulher havia recusado a possibilidade de ter relações sexuais e, ainda assim, ele prosseguiu o estupro. Mesmo ela suplicando para que parasse. Curiosamente no mesmo ano, o jogador foi transferido do Manchester United para o Real Madrid, se tornando a contratação mais cara do futebol mundial naquela época.

Os casos de abuso e violência contra as mulheres não são isolados. No Brasil, são registrados 164 casos de estupro por dia (aproximadamente 60 mil em 2018). Os crimes enquadrados pela Lei Maria da Penha passaram de 221 mil no ano passado. Esses, no entanto, são apenas os casos registrados. Em 2016, apenas 35% dos estupros foram notificados.

A mulher que acusa Neymar de estupro relatou que desistiu de manter relações sexuais com o jogador após o mesmo ter demonstrado comportamento violento e ter negado a utilização de preservativo. Mesmo assim, segundo a denúncia, Neymar continuou até que ela conseguisse escapar. No outro dia, ela tentou gravar um vídeo que comprovasse o seu comportamento agressivo. No entanto, um trecho foi divulgado nas redes sociais, em que ela agride o jogador. Diante disso, o linchamento virtual se intensificou, incluindo a criação da hashtag “Estuprada de Taubaté”. Ainda foi proposto um projeto de lei, pelo Deputado Federal Carlos Jordy, do PSL, chamado “Neymar da Penha”, em alusão à legislação que protege as mulheres contra a violência.

Entretanto, não há nada que a incrimine, exceto o julgamento do senso comum. O laudo de uma perícia médica feita depois do ocorrido relata estresse pós-traumático e hematomas no corpo da mulher que fez a acusação. Nove em cada dez relatos de estupro são verdadeiros. A imagem imaculada do jogador de futebol, blindado por todos os meios mais poderosos e influentes do Brasil, não creditaria à Neymar a imagem de um abusador de mulheres. Os esforços de todos, no momento, estão concentrados em mostrar para a população a importância do menino Ney que, aos 28 anos de idade, parece não conseguir se afastar de episódios polêmicos que expõem sua personalidade infantilizada e sua masculinidade tóxica, já que ele acaba criando por contra própria esse tipo de situação.

Neymar, assim como a maioria absoluta dos homens, é revestido por um escudo de masculinidade tóxica que faz com que suas atitudes violentas sejam aplaudidas como sinal de virilidade e poder. Ao discutir com seu treinador em 2010, Neymar irritou o treinador adversário, René Simões, que declarou à imprensa que o futebol brasileiro estava “criando um monstro”, por sua falta de educação com os companheiros de profissão.

Todas as atitudes, no entanto, eram defendidas como sinônimo do futebol ousado e alegre, mesmo incluindo momentos de falta de fair play e atitudes antidesportivas. Uma semana antes da da principal competição da Seleção Brasileira do ano, veio a acusação de estupro e o revenge porn como cereja do bolo. Dias depois, uma lesão o tirou da Copa América, que será sediada no País nas próximas semanas.

Neymar é um exemplo de masculinidade tóxica misturada com superproteção da sua imagem. Ele sempre aparece como vítima de julgamentos maldosos, mas nunca o responsável sobre seus próprios atos. Como consequência desse comportamento masculino, milhares de mulheres têm suas vidas impactadas todos os dias. A violência contra elas é silenciada por uma cultura que se esforça para torná-la normal, principalmente pela falta de informação. Nós não machucamos os meninos quando falamos sobre masculinidade tóxica, mas machucamos a todos quando deixamos de fazê-lo.

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