O Massacre no Sudão e o silêncio global

Militares assassinaram centenas de manifestantes desarmados em Cartum, mas ninguém ficou sabendo

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5 min readJun 22, 2019

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#PraCegoVer: Manifestante sudanês segura a bandeira nacional em uma barricada. (Reprodução: REUTERS/Stringer).

Por Carolina Pinheiro

A negligência da mídia tradicional não é nenhuma novidade quando falamos de África. Na verdade, tudo o que foge ao contexto norte-americano e europeu costuma escapar dos holofotes da imprensa. Notícias sobre a América Latina, Ásia ou Oceania até conseguem aparecer uma vez ou outra. Já o que acontece no continente africano parece não interessar a absolutamente ninguém.

É evidente que o racismo estrutural e a visão de mundo ocidental, por ser eurocêntrica, provocam esse absurdo descaso informativo em relação ao cenário da África. Entretanto, tal fenômeno choca ainda mais quando acontece diante de um evento muito relevante, por exemplo, o massacre que aconteceu no Sudão, no início do mês de junho. Esse episódio deixou aproximadamente 700 feridos e causou a morte de mais de 100 pessoas — consequências seríssimas desprezadas pelos veículos globais de comunicação.

Para entender como o massacre ocorreu, precisamos voltar um pouco à história recente do Sudão. Em 1989, o ditador Omar al-Bashir chegou ao poder através de um golpe militar. Seu governo autocrático durou 30 anos, até que, no fim do ano passado, começaram a estourar manifestações populares que clamavam pelo fim da ditadura no país. No dia 11 de abril de 2019, al-Bashir foi deposto e preso pelas Forças Armadas do Sudão. Logo, a população começou a demandar a realização de eleições livres para eleger um novo governo, composto por civis.

Entretanto, foi formada uma Junta Militar para comandar esse processo de transição na política sudanesa. Esse grupo de militares decidiu fechar o espaço aéreo e as fronteiras nacionais, além de suspender a Constituição e impor um toque de recolher no país entre 22h e 4h. Enquanto isso, os cidadãos eram reduzidos a meros espectadores.

Sendo assim, uma greve geral foi organizada para o dia 28 de maio, a fim de pressionar a transferência de poder para os civis. Os manifestantes deixaram claro que somente um governo civil poderia tirar o Sudão da grave crise econômica na qual se encontra e avisaram que o próximo passo seria a desobediência civil.

Os sudaneses enxergam a Junta como parte do antigo regime e tiveram a comprovação de sua perspectiva no último 3 de junho, quando militares abriram fogo contra um acampamento — lotado de manifestantes desarmados — montado há dias em frente ao Ministério da Defesa, na capital Cartum. Esse massacre, citado anteriormente, deixou muitas vítimas e chamou a atenção pela sua brutalidade. Inclusive, membros do governo provisório admitiram os abusos cometidos, mas rejeitaram pedidos de intervenção internacional, é claro.

A ação violenta foi encabeçada por um grupo paramilitar chamado Forças de Apoio Rápido (RSF) que, por sinal, possui ligação direta com o governo provisório.

“A RSF, a força militar especial que matou, estuprou e torturou milhares de pessoas em Darfur, agora leva a sua fúria assassina para a capital. Relatos de que corpos foram jogados no rio demonstram a total depravação dessas chamadas forças de segurança.” — condenou a Anistia Internacional, em um comunicado.

Foram contabilizados mais de 70 estupros durante o ataque, mas sabemos que o número deve ser ainda maior, já que é difícil para as vítimas denunciarem casos de violência sexual. Infelizmente, a utilização do estupro como arma de guerra se mostra um meio eficaz, da forma mais cruel, de intimidar ativistas. Vale destacar que esse tipo de violência não atinge somente mulheres.

Falando nelas, a participação feminina na onda de reivindicação popular pela transição democrática do Sudão está sendo memorável. As mulheres estão desempenhando um papel proeminente nos protestos, o que possivelmente fez a Junta Militar querer puni-las. A partir da violência sexual, eles querem humilhar as manifestantes e frustrar suas lutas. Dessa forma, eles deixam claro como não dispensam nenhum tipo de barbaridade para pôr fim à revolução.

#PraCegoVer: Mulheres sudanesas em protesto na capital Cartum. (Reprodução: AFP).

Em meio a todos esses crimes contra os direitos humanos, a comunidade internacional não foi além dos já esperados posicionamentos contrários às violências cometidas. O Conselho de Segurança da ONU condenou o massacre e pediu que a Junta Militar e o movimento de protesto pudessem encontrar uma solução para a crise juntos. A União Africana suspendeu o Sudão, até que seja formado um governo civil.

E a mídia? Por que as pessoas não estão falando disso? Por que esse massacre não apareceu em todos os veículos de comunicação do planeta?

Quando a emblemática Catedral de Notre Dame pegou fogo, em Paris, o mundo inteiro ficou sabendo do ocorrido instantaneamente. Nenhuma fatalidade. Mobilização geral. Houve uma enxurrada de lamentações nas redes sociais, com direito a fotos que comprovavam visita ao monumento francês. Na manhã do dia seguinte ao incêndio, já haviam sido arrecadados quase 600 milhões de euros.

A tragédia humana no Sudão não recebeu nem 1% da solidariedade midiática que uma construção europeia. Quase ninguém ficou sabendo porque simplesmente não foi noticiado. E pior, a cobertura insuficiente ocorreu em uma escala global, não estamos falando só da negligência dos veículos brasileiros. Esse desdém pelo que se passa no continente africano só escancara o ponto de vista racista da mídia ocidental e revela sua empatia seletiva.

Sorte da Humanidade que o mundo digital trouxe consigo o ciberativismo, ou seja, o ativismo via internet. A partir da mudança para a cor azul nas redes, em homenagem ao jovem Mohammed Hashim Mattar, morto no massacre do dia 3, pessoas de todas as partes do mundo estão se mobilizando para denunciar o que está acontecendo em Cartum. Além disso, há diversos influenciadores com lugar de fala assumindo posição de porta vozes em relação a atualizações e arrecadação de doações para o povo sudanês. Também há o engajamento através de hashtags, como #BlueforSudan.

De qualquer forma, é ultrajante que a mídia global tenha fechado os olhos para um massacre tão brutal quanto esse. Não obstante, cabe aos indivíduos bem informados angariar forças para ampliar a conscientização sobre a crise no Sudão, no mundo. Um povo não pode ser penalizado por sonhar com uma transição democrática para o seu país, muito menos assassinado enquanto luta por dias melhores. Vidas negras importam. Vidas africanas importam. Vidas islâmicas importam.

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