O verdadeiro legado de Elizabeth II

Como a comoção pelo falecimento da monarca acendeu o alerta do negacionismo histórico

Carolina Pinheiro
GIROSCÓPIO
5 min readSep 10, 2022

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#PraCegoVer: Rainha Elizabeth II com sua coroa e vestimenta real.

Por Carolina Pinheiro

Dizem que o tempo cura todas as feridas. A nível interpessoal, podemos concordar quase plenamente com essa pílula do saber popular. Já na esfera sociopolítica, o buraco é bem mais embaixo. Após 70 anos vivendo como Rainha, Elizabeth II faleceu. Enquanto veículos de mídia ao redor do mundo desengavetavam seu obituário, a comoção pública em torno da monarca inglesa também denunciou uma grave turbidez histórica.

Nos últimos tempos, a questão da pós-verdade tem ocupado posição central nos mais variados debates: dos telejornais mais assistidos às mais diversas salas de aula. Notícias falsas, deepfakes e até acontecimentos bizarros demais para acreditar. Não sabemos mais reconhecer um fato? Ou não existem fatos, apenas interpretações?

Este caminho — por vezes ingênuo, por vezes mal intencionado — da interpretação, no qual tudo é relativo, não poderia indicar uma cilada maior. Evidentemente, os fatos existem; assim como metodologias científicas rigorosas para produzir conhecimento histórico acerca deles. Logo, negar a história de forma leviana só serve à desinformação.

E quais seriam os fatos mais relevantes envolvendo a dita mulher mais famosa do mundo? Sabemos que seu reinado foi o mais longevo da história britânica e que passou por quinze primeiros-ministros, quatro papas e inúmeras guerras. No entanto, pouco se fala sobre outras importantes dinâmicas que envolveram a Coroa.

Com seus vinte e poucos anos, Elizabeth assumiu o trono e se tornou líder da Commonwealth, ou seja, passou a ser chefe de Estado não só do Reino Unido, mas de diversos países, como Canadá, Austrália e África do Sul. Apesar do antigo Império Britânico ter se transformado em uma “comunidade” de países, não há dúvida de que os territórios colonizados permaneceram, guardadas as devidas proporções, sob a égide de seu poder monárquico.

É importante elucidar o que essa manutenção de relações colonialistas, desde a mera influência até a ingerência em si, implica no currículo da monarca. Fato: durante décadas de barbárie colonial britânica, a Rainha esteve presente como a mais poderosa autoridade política do Reino Unido. Apartheid de mais de quarenta anos na África do Sul. Perseguição política e execuções violentas na Irlanda. Genocídio de populações nativas, notoriamente na Austrália, na Índia e no Canadá. Campos de concentração com tortura e abuso sexual no Quênia. Sem contar com a repressão ferrenha aos movimentos de independência e a devastadora exploração de recursos naturais. Até sua própria coroa era cravejada de joias saqueadas!

#PraCegoVer: Oficial britânico e sua coleção de cabeças Maori na Nova Zelândia, final do século XIX.

Além disso, não se deve subestimar o legado racista escravocrata que nunca deixou de sustentar o poder real. A escravização de pessoas negras foi responsável tanto pelo abundante enriquecimento da Inglaterra, que goza do status de país de Primeiro Mundo, quanto pela periferização político-econômica de diversas nações africanas e caribenhas. Um longo e excruciante regime colonizador, repleto de massacres e desumanização generalizada não pode ser simplesmente desconsiderado.

O que nos leva à romantização de toda uma família que lucrou, lucra e continuará lucrando com o racismo e o colonialismo. São pessoas com um suposto direito natural de viver às custas de muita brutalidade, injustiça e miséria ao redor do mundo. Vale lembrar que — embora episódios de bastidores sejam mantidos implacavelmente em segredo — a análise de apenas alguns escândalos já revelados permite enxergar, com clareza, o antro de depravação e supremacismo branco que paira sobre o Palácio de Buckingham. Das ligações entre Príncipe Andrew e tráfico sexual de menores às humilhações públicas sofridas pela Princesa Diana e sua nora Meghan Markle.

Portanto, a quem interessa romantizar a imagem desta família? Como admirar uma mulher cujo dever primordial estabelecia a representação de uma instituição tão retrógrada, violenta e racista como a monarquia britânica? A construção da imagem pop de uma senhora fofa, de conjuntinho colorido e sorriso simpático, distorce a real persona de Elizabeth II e deturpa quem ela realmente foi. As atrocidades de seu reinado não são um breve porém em sua história, mas o registro de uma agenda política bárbara que impactou negativamente a vida de milhares.

#PraCegoVer: Rainha Elizabeth visitando Gana pela primeira vez em 1961.

Quando assistimos filmes e séries, de modo geral, é difícil confundir vilões e mocinhos. Na tela, chama atenção a diferença gritante entre boas e más atitudes. Os espectadores, no geral, anseiam pela responsabilização daquele personagem vil que causa, deliberadamente, o sofrimento de inocentes. Por isso, chega a ser curioso como, na vida real, algumas narrativas fabricadas podem camuflar fatos tão contundentes. No mais, esse negacionismo histórico perpassa diversas figuras que são idolatradas, apesar de todo o mal que provocaram. Inclusive, a Inglaterra conta com exemplos categóricos, como Winston Churchill e Margaret Thatcher.

No dia do falecimento de Elizabeth II, a reação de pessoas oprimidas ao redor do mundo incomodou aqueles que exigiam compaixão pela Rainha. No entanto, até o mais solidário dos indivíduos há de convir que uma morte natural, depois de 96 anos de puro conforto e soberania, não requer misericórdia. Aliás, não é difícil concluir que a monarca nunca experimentou um milésimo do sofrimento imposto pelas intervenções globais da Coroa. Pelo contrário, levou uma vida para lá de sossegada e morreu em paz.

Apesar do negacionismo histórico transformar atrocidades em pormenores, nem a velhice, tampouco a morte exime a postura de toda uma vida. O legado da Rainha não depende de opiniões, já que está calcado em fatos impossíveis de engolir. Olhar criticamente para esse tipo canalha de comoção é resistir ao apagamento da dor sentida por povos inteiros. Deus salve a emancipação.

Obs: Esta autora mais do que encoraja a pesquisa sobre eventos colonialistas citados no texto.

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Carolina Pinheiro
GIROSCÓPIO

Internacionalista, mestre em Ciência Política, escritora e sonhadora profissional.