Por que Jesus não pode ser negro?

Oreia, Hot, Djonga, sua avó e a interpretação do sagrado

Giroscópio
GIROSCÓPIO
5 min readJun 15, 2019

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#PraCegoVer: Hot (direita), Djonga (centro) e Oreia (esquerda) andam em direção à câmera.

O hip-hop nacional foi dominado por Rio de Janeiro e São Paulo desde o início do seu movimento. Porém, essa década trouxe a expansão dos pólos de influência do ritmo. Outros estados da federação apresentaram seus artistas, com estilos e influências variados que tornaram plural o rap no Brasil.

Minas Gerais é um dos maiores responsáveis por esse crescimento. O aumento de qualidade na segunda metade dos anos 2010 passa por nomes da cena mineira. Entre eles, está um dos mais aclamados no rap nacional: Gustavo Pereira Marques, o Djonga.

O rapper, reconhecido pelo alto nível de suas rimas, surgiu no grupo DV Tribo, ao lado de Coyote, Clara Lima, FBC, Hot e Oreia. O grupo apresentou para o cenário grandes artistas, que se tornaram expressivos de forma individual, gerando o fim da parceria em 2018. No entanto, os membros ainda colaboram nas músicas dos seus ex-companheiros de grupo.

Hot e Oreia foram os únicos que ainda continuam como uma dupla. No dia 3 de junho, eles lançaram o clipe da música ‘Eu Vou’, que teve a participação especial de um dos seus antigos parceiros, Djonga.

O clipe é inspirado na obra de Ariano Suassuna, ‘O Auto da Compadecida’, livro que ganhou série e filme, visto por 11 em cada 10 brasileiros. Se, no cinema, Selton Melo e Matheus Nachtergaele deram vida aos sertanejos Chicó e João Grilo, no clipe, são a dupla de rappers que interpretam os inesquecíveis personagens.

Na cena em que Chicó esfaqueia João Grilo — que está com uma bolsa de sangue por baixo de sua camisa — para tentar enganar o grupo de cangaceiros e assim sobreviver, Oreia acerta o estômago de Hot com uma faca, enquanto ao fundo podemos ouvir vozes masculinas e femininas noticiando o esfaqueamento do então candidato à Presidência, Jair Bolsonaro.

Assim, a música tem início. O principal alvo das rimas de Oreia é a família tradicional, que tem como objetivo manter seus valores inalterados, mas que discrimina qualquer outro tipo de configuração familiar ou comportamento fora do padrão conservador. O discurso de ódio e a defesa desse padrão de família são potencializadas pela disseminação de fake news, na qual a verdade se mostra como o último objeto de checagem e o WhatsApp se torna a maior plataforma de informação dos desinformados.

Ó tio, cê tá me dando medo

Disseminando o ódio, coitado do primo preto

Fake news e zap zap, vicia que nem baque

Cê tá possuído, pelo KKK-crack

Se é a gaita mágica de Chicó quem “ressuscita” João Grilo no filme, a chegada do refrão que faz Hot reviver no clipe. “Deus pra mim é Djonga, não me leve a mal” é a sua primeira frase na música. E o começo não poderia ser melhor. Se fomos criados à imagem e semelhança de Deus, por que um menino negro de Minas não pode querer ser Deus?

Essa é a crítica presente nas rimas de Hot. O cristianismo de fachada ou o bolsonarismo cristão, que mais exclui do que inclui, nada parece com o amor supostamente pregado por Jesus Cristo durante sua passagem pela Terra. O homem que andou com prostitutas, ajudou doentes, foi contra o acúmulo de riquezas em nome do seu Pai e realizou tantos atos de bondade estaria de fato satisfeito com os seus auto-proclamados representantes no plano terrestre?

Meu precioso, Jesus era anarquista

Num era racista, jogado na pista

Bebia vinho e chupava Madalena

Respeitava as mina e fudia o sistema

No filme, João Grilo recebe o perdão divino por meio da intercessão de Nossa Senhora Aparecida. Ao voltar pra sua vida na Terra, o sertanejo é festejado por Chicó e sua esposa, Rosinha. No meio da estrada, um homem negro, enrolado em uma coberta, pede comida para o trio. João, que viu Jesus de perto, nega. Rosinha entrega, dizendo que Jesus as vezes se disfarça de mendigo para testar a bondade das pessoas. Ironicamente, Grilo questiona, afirmando que Jesus não poderia ser negro, se esquecendo de todos os acontecimentos do reino dos céus, apenas se lembrando da verdade dos homens.

Mesmo com todas as evidências que provem que existe maior possibilidade de Jesus ser mesmo negro, a história maquiada tornou a imagem de um Jesus branco, de longas madeixas castanhas, uma verdade absoluta. Até eu tenho esse retrato no quarto, e provavelmente você também já viu um desses, em algum momento.

As pessoas que influenciaram na expansão do Cristianismo são os principais responsáveis por deturpar a imagem do sagrado, ainda que, para eles, qualquer outra maneira de interpretação do Salvador seja uma forma de heresia. E foi dessa forma que a peçaO Evangelho Segundo Jesus Cristo, Rainha do Céu’, onde Jesus era interpretado pela atriz transexual Renata Carvalho, teve a sua exibição sob risco de censura em capitais como Rio de Janeiro, São Paulo e Salvador.

Na Parada Gay de 2015, outra mulher trans encenou Cristo, recriando o momento da crucificação. Ao invés da sigla “INRI” presente acima da cabeça de Jesus, a frase “Basta de homofobia com GLBTs” estampava a cruz da atriz Vivianny Belloni. A manifestação de sua interpretação do sagrado, no entanto, terminou na delegacia. Ela teve que prestar esclarecimentos sobre a sua performance. Curiosamente, todos os anos existem peças de teatro que reproduzem o ato de paixão de Jesus Cristo com seus iguais, feito por atores homens e brancos. Já essas interpretações ganham aplausos, nunca páginas policiais.

O rap dos mineiros representa mais uma forma de protesto e de reinterpretação de Jesus. No clipe de ‘Eu Vou’, Djonga encarna o “Jesus de disfarçado”, referenciando seu corte de cabelo, como o mesmo canta em uma de suas rimas. As referências do cantor ao sagrado, porém, não são recentes. Em 2018, o seu disco foi intitulado ‘O menino que queria ser Deus’. Já seu nome no Twitter é literalmente o do criador. Gustavo não deixa o seu lado espiritual de fora de suas obras, tendo como exemplo a música ‘Bença’, que exalta a existência de uma família estruturada e sua avó, a matriarca da família, como exemplo de religiosidade.

E se Djonga é Deus, nada mais justo do que sua avó aparecer na obra. Ela aparece interpretando Nossa Senhora Aparecida ou “Vó de Deus”, como o rapper diz na canção. A imagem da santa padroeira do Brasil foi encontrada por pescadores na cidade que leva seu nome, em São Paulo, há mais de 300 anos. Não se sabe como aconteceu, mas a escultura — que poderia ser de Nossa Senhora da Conceição — escureceu com o tempo. Hoje, a reprodução da figura da santa é de uma mulher negra. Então, por que não podemos reproduzir seu filho como um homem negro?

Por séculos, os propagadores do Cristianismo declararam que seu Salvador era um homem branco, de valores únicos para a sociedade da época, os quais deveriam ser seguidos. No entanto, desconsideravam a humanidade de qualquer outro que não estivesse alinhado a esse padrão. Mesmo que tenha sido negro aquele que foi crucificado na sexta-feira da paixão, que morreu por todos nós, feitos à sua imagem e semelhança, apenas uma parcela da população pode ter o seu amor na totalidade? Se Jesus Cristo foi o que está escrito, ele nunca nos foi apresentado. O que nos deram foi um novo personagem que nada tinha a ver com o original. Esse pode ser negro, trans, mulher, ou qualquer outra configuração de ser humano. Todos podem ser Deus.

O clipe da música você confere abaixo:

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