A precificação do acesso à Justiça

Letícia Göss
Goss Sociedade de Advogados
5 min readMay 15, 2018

O preâmbulo da Constituição da República, promulgada em 1988 em Assembleia Nacional, estabeleceu como um dos valores supremos do Estado Democrático de Direito o amplo acesso à Justiça, axioma este que restou consagrado em seu texto na letra do artigo 5º, inciso XXXV, o qual passou a dispor que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.

A abrangência do princípio da inafastabilidade da jurisdição deve ser entendida no sentido de que qualquer afirmação de direito pode ser entregue à apreciação do Poder Judiciário, o qual deve fornecer ao jurisdicionado, que o provocou, uma solução ao conflito, mesmo que negativa (BUENO, 2008, p. 102).

Destarte, para que não restasse dúvidas quanto à amplitude do acesso ao Judiciário que ora estabelece a Carta Maior, o constituinte originário, por meio do inciso XXXIV, do mesmo artigo 5º, definiu que o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder, são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas.

Assim, verifica-se que a Carta da República definiu ser amplamente desejado um acesso incondicional ao Poder Judiciário, como forma de tornar instituída no Brasil uma sociedade verdadeiramente democrática, permitindo que toda a sociedade possa se socorrer do Estado-Juiz a fim de promover, seja como autor ou réu e em todos os graus de jurisdição, os direitos individuais ou coletivos de que são titulares, independentemente do pagamento de qualquer numerário ao Estado antes de entregue a prestação jurisdicional.

Mais adiante, a Constituição Federal, dispõe no artigo 5º, inciso LXXIV, que “o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”. É a partir deste último dispositivo que as controvérsias passam a emergir.

Analisando-se, individualizadamente, o teor do dispositivo ora citado, pode-se chegar à errônea conclusão de que a garantia fundamental prevista no inciso XXXIV não seria absoluta, mas, sim, um direito passível de relativização, negando-se, desta maneira, a característica supraestatal da norma.

No entanto, da hermenêutica do conjunto de dispositivos constitucionais, bem como do texto preambular da Lei Maior — que contém valor jurídico, apesar de não autônomo — pode-se concluir que a intenção do diploma é a de franquear a todo cidadão o amplo direito de petição ao Judiciário, o qual prescinde do adiantamento de qualquer valor.

Desta forma, a melhor interpretação do disposto no inciso LXXIV do artigo 5º da Magna Carta consiste não em tornar relativa a garantia do amplo acesso à Justiça previsto ao longo do texto constitucional, mas, sim, o de reafirmá-la. O verdadeiro sentido da voluntas legis prevista no referido inciso traduz-se em, de um lado, conceder ao hipossuficiente o patrocínio gratuito das demandas por meio de um advogado dativo — munus desempenhado hoje pela Defensoria Pública — e, de outro lado, a isenção do pagamento de custas e despesas processuais que, eventualmente, precisariam ser pagas na entrega da prestação jurisdicional pelo vencido, a fim de alimentar a máquina judiciária, fazendo frente às despesas apuradas ao final do processo pela contadoria judicial.

A expressão “ao final” ora utilizada não se trata de equívoco, mas a correta interpretação do conjunto normativo previsto na Constituição Federal. Isto porque a leitura dos incisos XXXIV e XXXV do artigo 5º, do preâmbulo do Diploma Fundamental combinados com o disposto no inciso LXXIV leva a esta inarredável conclusão, até porque qualquer adiantamento do pagamento pelos serviços estatais de natureza jurisdicional já representa uma exceção à regra segundo a qual todo serviço só deve ser pago quando completado pelo prestador.

Deste modo, ao cidadão não beneficiário da Justiça Gratuita é assegurado o direito de peticionar ao Poder Judiciário independentemente do pagamento de custas, as quais deverão ser desembolsadas ao final do processo, se vencido. Já ao indivíduo hipossuficiente é assegurada a assistência do Estado, na forma do artigo 5º, LXXIV, CF, que, no que diz respeito às custas judiciais, o isentará do pagamento das taxas ao final da demanda, caso venha a sucumbir.

Sendo assim, se a própria Constituição da República institui que a lei não possa retirar do Poder Judiciário a apreciação de qualquer ameaça ou lesão a direito, resta indubitável que qualquer norma que pretenda dar interpretação diversa a esta garantia consagrada no texto constitucional, de maneira a criar obstáculo ao jurisdicionado de levar à apreciação do Estado-Juiz seu peticionamento, sob a forma de desembolso de quantia em dinheiro, está eivada, irremediavelmente, de flagrante inconstitucionalidade.

Logo, quando o legislador infraconstitucional, ao redigir o artigo 82 do Código de Processo Civil, instituiu o critério de “custas judiciais” a serem pagas, de forma adiantada, contra todos os atos que se realizarem ou que forem requeridos no processo, agiu em descompasso com os fundamentos consagrados na Carta da República, que permite largo acesso ao cidadão de acionar o Poder Judiciário livre de qualquer condição pecuniária, na forma de adiantamento de custas. Assim, as custas se tornaram um divisor de águas para se adentrar aos Tribunais do país.

Como se sabe, por um alinhamento estritamente político da magistratura brasileira, está cada vez mais difícil a comprovação da hipossuficiência do jurisdicionado na forma da acepção que vem sendo tomada pelos tribunais e juízes de primeira instância, que é a de considerar hipossuficiente somente o indivíduo que apresentar estado de insuficiência de recursos absoluto.

Desta feita, conforme vem se verificando em diversos julgados pátrios, os princípios constitucionais da inafastabilidade da jurisdição e do amplo acesso à justiça vêm sendo, de modo infeliz e reiteradamente, vergastados pelos juízes brasileiros, sobretudo por via de despachos saneadores em petições iniciais e nos juízos de admissibilidade de recursos, vez que somente afastam o adiantamento de custas e despesas àqueles que comprovem efetiva miserabilidade, aos quais são concedidos os benefícios da Gratuidade de Justiça, nos termos do Novo Código de Processo Civil.

Frise-se que tal vilipêndio ao direito constitucional de acesso à Justiça vem atingindo também o manejo de ações coletivas por parte dos sindicatos em prol da classe trabalhadora, bem como por parte de outras associações sem fins lucrativos.

Desta forma, o Poder Judiciário, ao afrontar os princípios constitucionais e, principalmente, ao negar vigência ao artigo 5º, LXXIV, previsto na Magna Carta, vem agindo politicamente em causa própria, dificultando o acesso à Justiça por parte dos cidadãos brasileiros ao atribuir a estes a necessidade de adiantar pagamento pelos serviços judiciais, de maneira a beneficiar o Estado, e somente o Estado, em duas vertentes: desafogar o Judiciário que há muito não se encontra com o serviço em dia, bem como auxiliar no aumento da arrecadação estatal.

Nessa toada, o amplo acesso à Justiça, consagrado no texto constitucional, e que deveria ser conferido a toda a população, sem distinção de classe econômica, só vem sendo conferido ou aos ricos, que podem pagar pelas custas iniciais e preparos de recursos, ou aos miseráveis, interpretação que vem sendo conferida ao termo “hipossuficiente”.

Ocorre que, como é sabido, os realmente miseráveis nunca, ou quase nunca, recorrem ao Poder Judiciário.

Letícia Göss é advogada e defensora do direito constitucional de livre acesso ao Poder Judiciário. É sócia fundadora da GOSS SOCIEDADE DE ADVOGADOS. www.goss.adv.br

--

--

Letícia Göss
Goss Sociedade de Advogados

Advogada especialista em Direito Material e Processual do Trabalho, atuando desde 2009, com vasta experiência no contencioso tributário e previdenciário.