As construtoras estão obrigadas a pagar multa ao dono do imóvel por atraso na entrega das chaves?

Letícia Göss
Goss Sociedade de Advogados
4 min readAug 22, 2018

É fato comum que, em caso de atraso na entrega das chaves pela construtora, o comprador do imóvel ajuíze demanda judicial pedindo indenização por lucros cessantes juntamente com multa a serem suportadas pela empresa.

No entanto, após anos de decisões judiciais nada uniformes, o Superior Tribunal de Justiça resolveu realizar audiência pública, neste dia 27 de agosto, às 11h, para discutir o tema da possibilidade de cumulação dessas duas verbas, já que os Projetos de Lei do Senado n.º 279/14 e da Câmara n.º 217/15 que definiriam a matéria estão parados: o primeiro na mesa do CCJ e o segundo no gabinete do relator desde setembro de 2017.

Sendo assim, o cerne do debate é verificar se os pedidos de pagamento de indenização por lucros cessantes e de cláusula penal teriam a mesma natureza, pois em caso afirmativo, ambos não seriam cumuláveis em favor do adquirente do imóvel.

Nessas águas, o que se verifica é que alguns magistrados consideram que ambos os pedidos teriam caráter compensatório, ou seja, compensar o consumidor ofendido pelo inadimplemento contratual, momento em que a cumulação dos requerimentos é negada. De outro lado, há juízes que entendem que a indenização por lucros cessantes e a multa são verbas de espécies distintas, sendo a primeira compensatória e a segunda essencialmente moratória, isto é, uma penalidade por atraso além do prazo de carência para entrega das chaves. Neste último caso, a cumulação dos requerimentos é deferida.

Logo, para alguns os lucros cessantes fariam contrapeso aos danos experimentados pelo comprador do imóvel, já a cláusula penal serviria como função punitiva contra a parte inadimplente com o objetivo claro de coibir reincidência de conduta, não contabilizando qualquer prejuízo.

Contudo, as vozes que entendem pela identidade de natureza jurídica entre os lucros cessantes e a pena convencional são as de Sérgio Cavalieri Filho, Orlando Gomes e Orozimbo Nonato, para os quais a cláusula penal tem por objetivo “fixar previamente a liquidação de eventuais perdas e danos devidas por quem descumprir o contrato”. Em outras palavras, para estes autores a multa tem natureza compensatória, pré-fixando a indenização.

Além disso, o teor do artigo 416 do Código Civil parece amparar esse entendimento ao não admitir a possibilidade de indenização suplementar à cláusula penal convencionada, in verbis:

Art. 416. Para exigir a pena convencional, não é necessário que o credor alegue prejuízo.

Parágrafo único. Ainda que o prejuízo exceda ao previsto na cláusula penal, não pode o credor exigir indenização suplementar se assim não foi convencionado. Se o tiver sido, a pena vale como mínimo da indenização, competindo ao credor provar o prejuízo excedente.

Porém, há quem afirme que não se deve confundir a cláusula penal convencionada com a cláusula penal moratória, eis que seriam institutos distintos, de maneira que esta última afastaria a incidência do citado dispositivo da Lei Civil, sendo amparada por dicção expressa do artigo 411 do mesmo Codex, que aduz, in litteris:

Art. 411. Quando se estipular a cláusula penal para o caso de mora, ou em segurança especial de outra cláusula determinada, terá o credor o arbítrio de exigir a satisfação da pena cominada, juntamente com o desempenho da obrigação principal.

Nesse sentido a lição de Caio Mário da Silva Pereira, ipsis verbis:

Quando a cláusula penal é moratória, não substitui nem compensa o inadimplemento. Por essa razão, nenhuma alternativa surge, mas, ao revés, há uma conjugação de pedidos que o credor pode formular: o cumprimento da obrigação principal que não for satisfeita oportunamente, e a penal moratória, devida como punição ao devedor, e indenização ao credor pelo retardamento oriundo da falta daquele.

Registre-se, ainda, que nessa audiência pública a Abrainc irá sustentar que o valor indenizatório para a reparação dos danos ao adquirente do imóvel, em caso de atraso na entrega, seja limitado ao valor de aluguéis para os respectivos períodos, afirmando, da mesma forma, a preocupação de que a possibilidade de cumulação entre multa e lucros cessantes resultaria em oneração desproporcionalmente elevada às empresas do setor, sobretudo em vista da carência de mão-de-obra e insumos, fatores externos que estariam fora do controle das construtoras.

Convém assinalar que na sessão pública organizada pelo STJ será debatida, também, a possibilidade de inversão da cláusula penal que tiver sido estipulada no contrato somente em desfavor do consumidor, de modo a atingir igualmente as contratadas.

Conforme o exposto e em que pese os argumentos em favor e contra a cumulação de cláusula penal e lucros cessantes, assim como a viabilidade de inversão da penalidade estabelecida unilateralmente em documento, o que se percebe é que a maior parte das empresas do setor dispõe de instrumentos contratuais obsoletos, destituídos da alta qualidade jurídica e atualização necessárias para reger negócios de tão alto investimento, o que impediria, algumas vezes, a judicialização de matéria que poderia estar sob o manto do negociado, sobretudo quando a jurisprudência apresenta resoluções extremamente díspares ao longo dos anos.

Infelizmente, para as empresas do setor que estiveram menos precavidas, somada a crise pela qual passaram e que ensejou o atraso na entrega das obras, a situação está agora bastante delicada, uma vez que o Tribunal da Cidadania, ao que tudo indica, será favorável à inversão da cláusula penal, o que poderá, talvez, justificar sua cumulação com os lucros cessantes, decisão esta que será tomada em repercussão geral.

Referências:

CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 2. Ed., São Paulo: Malheiros, 2000, p. 205.

GOMES, Orlando. Obrigações 10. Ed., Rio de Janeiro: Forense, 1995.

NONATO, Orozimbo. Curso de Obrigações (generalidades — espécies). Vol. II, Rio de Janeiro: Forense, 1959.

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil Vol. 11, 17 a ed.: Forense, Rio de Janeiro, 1999, p 106–107.

Letícia Göss é sócia fundadora da GOSS SOCIEDADE DE ADVOGADOS, escritório jurídico com vasta experiência no consultivo e contencioso do Direito Imobiliário. www.goss.adv.br

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Letícia Göss
Goss Sociedade de Advogados

Advogada especialista em Direito Material e Processual do Trabalho, atuando desde 2009, com vasta experiência no contencioso tributário e previdenciário.