As entrelinhas dos códigos do governo digital

Foi aprovado no Senado Federal o “PL das Govtechs” com a proposta de aumentar a eficiência da administração pública e regulamentar a “transformação digital do governo”. Porém é fundamental que a sociedade civil organizada participe desse processo legislativo.

Gabriel Salgueiro
GovTech Connection
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4 min readFeb 27, 2021

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O Projeto de Lei nº 7843/17, de autoria do Deputado Federal Alexandre Molon (PSB/RJ), é uma iniciativa louvável e foi recebido com grande entusiasmo por diversos atores do ecossistema de govtechs. Todavia há um dispositivo que, embora simples, pode vir a causar muita dor de cabeça: trata-se do art. 29, § 3º (transcrito abaixo acompanhado do art. 29, § 2º, XI, ao qual faz referência).

Art. 29. Os dados disponibilizados pelos prestadores de serviços públicos, bem como qualquer informação de transparência ativa, são de livre utilização pela sociedade, observados os princípios dispostos no art. 6º da Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018 — Lei Geral de Proteção de Dados.

[…]

§ 2º Sem prejuízo da legislação em vigor, os órgãos e entidades previstos no art. 2º deverão divulgar na internet:

[…]

XI — inventário de bases de dados produzidos ou geridos no âmbito do órgão ou instituição, bem como catálogo de dados abertos disponíveis;

[…]

§ 3º É facultado aos prestadores de serviços e aos órgãos e entidades públicos que tenham por objeto a execução de serviços de tratamento de informações e processamento de dados, em relação a dados abertos já disponibilizados ao público e devidamente catalogados de acordo com o art. 29 §2º XI, a cobrança de valor de utilização, no caso de acesso tipicamente corporativo ou institucional, contínuo, com excessiva quantidade de usuários e requisições simultâneas, grande volume de dados e processamento em larga escala.

É evidente que suportar constantes e massivas requisições de dados exige uma infraestrutura robusta — o que, no limite, implica em maior despesa do Estado. No mesmo sentido, também é ponto pacífico que, hoje, muitos provedores de soluções privados usam dessa funcionalidade mais robusta (frise-se: custeada pelo Estado) para vender soluções ao próprio Estado.

Ora, se o Estado irá prover um acesso básico aos dados, aqueles serviços privados que precisam de um fornecimento de dados “mais avançado” deverão pagar pelo custo que o Estado terá com essa infraestrutura adicional. Correto?

“Para todo problema complexo existe sempre uma solução simples, elegante e completamente errada” — H.L. Mencken

Como Mencken sugere: não, este raciocínio não está correto. Ou melhor: estaria correto, se as disposições legais fossem melhores trabalhadas ou se, ao menos, tivesse ocorrido algum debate público acerca do malfadado §3º, do art. 29.

Há lacunas extremamente significativas neste ponto:

  • o que o Estado irá prover, afinal?;
  • empresas de todos os portes e estágios (da sua startup que ainda sequer possui CNPJ até Big Techs) estarão submetidas às mesmas regras?;
  • o que raios é “acesso tipicamente institucional”? Um órgão de fiscalização do Estado do Paraná terá que pagar para acessar os dados da Receita Federal? Uma Organização do Terceiro Setor que atua na fiscalização de contas públicas cai nessa malha de “acesso institucional”?
  • quanto é uma “excessiva quantidade de […] requisições simultâneas”?
  • o que define “processamento em larga escala”? De certo é possível, então, alguém usar dos servidores parrudos do SERPRO (ou de qualquer outro serviço subnacional de processamento de dados ) para rodar a própria aplicação?

Ok, poderiam surgir disposições posteriores normatizando esses aspectos básicos. É o adequado, do ponto de vista legislativo. Mas, infelizmente, não há qualquer exigência legislativa sobre regulamentação posterior. Pelo que consta do PL, cada prestador poderá determinar, ao próprio arbítrio, essas variáveis.

Muitos irão alegar que, se somar esse pedacinho deste PL a outro pedacinho da Lei XPTO, e acrescentar o raciocínio do STJ no caso ABCDE e…RRRÁÁ!!! Os problemas estarão solucionados. Só que não! Bom, ao menos não para uma startup — que, pela natureza intrínseca de pequena empresa, não possui corpo jurídico robusto o suficiente para questionar nos tribunais eventuais cobranças indevidas praticadas pelos prestadores de dados.

A manutenção da gratuidade ilimitada e indistinta no uso dos dados pode ser questionável. Mas estabelecer, de forma pouco transparente, a possibilidade de cobrança por acesso aos dados é certamente um aspecto nocivo, não só ao ecossistema de govtechs, mas também aos princípios constitucionais de transparência e eficiência da Administração Pública.

Cobrar pelo uso de uma API, por exemplo, pode não só “matar no ninho” ideias revolucionárias descapitalizadas, mas também aumentar o custo daqueles que projetos que resistem — custo este que, obviamente, será repassado aos clientes (que, no caso das govtechs, é o próprio Estado).

Não há “bala de prata” para sanar a questão nem legislação perfeita; há, sim, solução mais eficiente. Soluções eficientes, via de regra, surgem de debates amplos e claros entre sociedade, governo e empresas.

Este artigo não representa as opiniões das instituições ligadas ao autor, tampouco a opinião do Govtech Connection - sendo este um canal independente para a publicação de conteúdos autorais do ecossistema de govtechs. Caso queira colaborar, envie sua proposta de artigo para o nosso e-mail govtechconnection@gmail.com.

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Gabriel Salgueiro
GovTech Connection

Assessor Jurídico no Ministério Público de Contas do Estado de Minas Gerais (MPC/MG). Bacharel em Direito (UFMG).