Altar

Vanessa Del Negri
5 min readDec 8, 2016

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Ilustração por Gabi Cesar

Desprezando todas as convenções maníaco-depressivas de que grandes histórias de amor mal resolvidas acontecem embaixo de uma tempestade, essa aqui deu-se numa ensolarada manhã de domingo em que crianças criançavam, passarinhos passarinhavam e, curiosamente, o padre da paróquia do bairro ainda nem havia treinado o discurso do casamento que se daria dali algumas horas.

A madrinha corria histericamente de um lado ao outro resolvendo pequenos problemas que ninguém se importava, a noiva arrumava seus cabelos em um coque na nuca com flores e brilho e o noivo tinha uma crise de dor de barriga em casa, sozinho. Enquanto lia o jornal no banheiro, ouviu a campainha soar. “Merda”, pensou, e limpou a bunda como pôde para atender. Viu quem era pelo olho-mágico e, por alguns segundos, cogitou desistir de abrir.

Era ela. Sim, a amiga que o acompanhara por anos e, que com essa história de casamento, tivera sido abruptamente afastada de seu convívio pela força do destino e do ciúme louco feminino de sua noiva. Ele respirou fundo algumas vezes diante da fechadura. Naquela altura, ele ainda poderia desistir, seria loucura abrir a porta naquele momento. “E quem disse que eu sou normal?”, se respondeu antes de destrancar a porta e girar a maçaneta.

A claridade vinda da rua ofuscou a vista do noivo. Eles ficaram, então, por menos de um segundo se encarando. Neste átimo de tempo nosso protagonista pôde olhá-la em cada detalhe, desde a unha do mínimo dedo do pé até o cabelo revolto que voava em sua cara pela corrente do vento.

“Desculpa, eu não tive tempo de me trocar”, disse a amiga afobada. Ela vestia uma bermuda surrada cor-de-burro-quando-foge, camiseta do que parecia ser um pijama e Havaianas brancas. Nos olhos, algo desmascarava a noite toda em claro.

– Posso entrar?

– Claro, desculpa. Aceita um café?

– Por favor.

Foram até a cozinha. Era a terceira vez que ela entrava naquela casa, muito embora já fizesse quase dois anos que ele morava ali. O noivo olhou pro bule e lembrou-se que não havia feito café naquela manhã — acordou e correu pro banheiro sem nem se importar em comer. Olhou sem graça para a amiga, que parecia suavemente elétrica, denotando seu nervosismo pelas unhas batendo ritmadamente no tampo de madeira da mesa.

– Puta merda, não tem café.

– Deixa que eu faço.

A visita começou a abrir armários e fuçar potes e mais potes. A dor de barriga dele parecia aumentar. Nem reparou que passavam-se cinco minutos já e a água começava a ferver na chaleira. Tudo ainda parecia encantador demais, sobretudo o fato dela entrar por aquela porta e abrir os armários como se fosse de casa. Tudo nela era lindo. Até o feio era lindo.

Não era daquelas mulheres-padrão que se vê por aí. Odiava até mesmo pensar em algum dia ficar com o corpo em forma e fazia questão de cultivar cicatrizes de tombos e machucados com um carinho quase maternal. Seu cabelo mudava de cor conforme seu humor. Quando eles se conheceram, ela tinha os cabelos cor-de-rosa. Era ridícula, gritava palavrões e fumava um cigarro atrás do outro num desses bares com sinuca. Ela não jogava, ficava só na mesa esperando alguém encher seu copo de cerveja. Naquela noite, estava incrivelmente bêbada e entediada. Chegou para conversar com ele como aquelas mulheres que nada têm a perder e dois dias depois jantavam juntos. Foi talvez a amizade mais sincera de toda sua vida.

– Você não tinha parado de fumar?, ela inquiriu.

– Voltei ontem.

– Sabia que não ia durar tanto.

– Ha ha, nunca dura. Tive até insônia essa última noite. Acabei dormindo só depois de uma garrafa do vinho mais barato que tinha aqui em casa e 18 cigarros.

– Você ainda morre disso.

– Eu ainda morro de tudo. Viver é minha doença crônica.

– Terminal.

– Seminal.

Silêncio. Os dois esboçaram um sorriso ao mesmo tempo.

– Tá nervoso?

– Não, não, ele replicou um tanto estranho.

– Aposto que você acordou com dor de barriga.

– Ha ha. Apostou certo. Eu estaria lá ainda se você não tivesse aparecido.

– Pode continuar cagando, eu falo de fora da porta!

– Pode parar de ser besta, T.. Você veio aqui por que? Tem alguma coisa pra falar?

– Tenho. Aliás, tenho tanta coisa a te dizer que nem mesmo Homero saberia compilar numa Odisséia.

– Sobre o que?, falou o noivo que já desistira de fazer um café fresquinho.

– Sabe, né. Sobre a vida, os pássaros, as obras intermináveis de Deus, os filmes do David Lynch…

– Você nunca muda…

– Tá azul.

– Eu vi. Tá em paz?

– Tô blue.

– Você deveria estar trocada.

– Eu sei. A cerimônia é logo logo.

– Não me diga que você não vai.

– Eu vou, mas não poderia ir sem antes te ver.

– Mas você me verá lá.

– Não. Eu verei você e sua esposa. Você e sua nova família. Verei seu novo você. E não é o seu novo você que me cativou. Eu vim aqui tentar ver o amigo que me tirou do tédio há três anos numa mesa de bar.

– Lembro como se fosse ontem. Aquele lugar fedia a cigarro. Você era a única coisa bonita ali.

– E você era o único míope ali.

– Você sabe que nunca te olhei com a retina.

– E agora?

– Agora o que?

– Que coisa eu sou pra você?

Ele respirou com o mesmo ar de desespero que abriu a porta.

– Tudo, menos uma coisa, respondeu.

Ela realmente era tudo para ele. Era o ar que respirava, a motivação para suas músicas, os sonhos que ainda se realizariam, a esperança da vida poder ter mais graça. Um único dia para que pudessem somente sorrir, despretensiosamente, um para o outro. E no final de tudo, era o olhar que esperava decifrar um dia, o abraço mais doce, o corpo mais quente, o amor mais sincero.

– Então eu não sou nada.

O vento passou pela janela e levou para dentro toda a poeira da rua. Nesse momento as crianças não criançavam, os pássaros não passarinhavam e o padre já vestia sua batina, pensando que o destino fez dos padres e dos executivos os seres mais desgraçados do universo, todos obrigados a usarem roupas sufocantes em pleno verão tropical abençoado por Deus e bonito por natureza.

– Trouxe teu presente de casamento. É um poema. Eu mesma fiz. Tá idiota.

– Você nunca mais vai voltar, né?

– Nunca.

– Eu sempre te amei.

– Eu sempre soube.

Ela levantou-se da cadeira da cozinha e foi sozinha mesmo para porta. E, lá fora, o irmão do noivo buzinava insistentemente para que fossem logo para a igreja.

Ilustração por Gabi Cesar

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