A bebedora de Absinto

Marina F.
5 min readAug 9, 2016

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Nunca fui dada à arte, mas aprendi desde cedo que na vida adulta devemos dissimular alguns interesses pelo bem estar social. Me parece incrível como algumas verdades são adquiridas ao longo da vida e de repente você prega algo que já não sabe de onde veio. Em algum momento desde aquela quarta-feira em que nasci, ouvi dizer ou li ou inventei na minha própria cabeça que para apreciar uma pintura é preciso aproximar-se dela aos poucos. Talvez seja uma teoria da arte estudada através dos séculos por acadêmicos europeus, talvez sejam meus 4 graus de miopia.

Um dia me encontrei na situação quase obrigatória de visitar um museu. Estava sozinha, não havia nenhuma pressão em ser culta nem interessada naquela arte toda diante de meus olhos. Mesmo assim, me fixei em um quadro tempo suficiente para ter uma pequena epifania.

Aquela paisagem portuária do norte da França não poderia significar menos para mim. Nasci e cresci longe do mar, longe da natureza, longe de qualquer sinal de vida orgânica. Estava muito distante de casa, mas ainda rodeada de concreto em sua pior forma, servindo de moldura para aquela cidade caótica e suja. Mesmo dentro do museu, era possível ouvir as buzinas ensandecidas dos carros antigos que disputavam entre si quem estava mais atrasado.

Não posso dizer quanto tempo estive ali, já que há muito me livrei da opressão do tic tac de um relógio de pulso. Gosto de pensar nisso como um ato de rebeldia, um grande foda-se aos termos e condições que aceitamos sem ler quando chegamos à este mundo. Sonho em um dia não saber que dia é. Me perder tão profundamente em um estado de sensatez em que não se faz necessário saber em que ponto do calendário estou.

Foto por Gabriela Oliveira (instagram.com/gordura)

Ao longe, aquele retrato não passava de um borrão sem sentido, muito parecido com a desordem que são minhas lembranças. Minha memória deve ter ao menos 6 graus de miopia, porque não me lembro com nitidez nem os fatos não muitos distantes na linha do tempo. Diferente do sentimento que tenho em relação à minha precária visão, sinto grande alívio em ter a memória obstruída. Quisera eu ter algum tipo de miopia para o futuro. Minhas unhas roídas são provas cabais da minha visão supersônica quando o assunto é o provir. Insônia, bruxismo, gastrite e outros males da vida moderna dão o indício claro de um nível de ansiedade para muitos inaceitável, mas diante daquele Boudin eu não pensava em nada disso.

Um passo à frente e todo o panorama muda. Já conseguia decifrar alguns contornos de casas, barcos, talvez uma nuvem ou mais um borrão codificado pela distância. Ainda assim, não sabia por que aquele quadro me prendia a atenção. Agora, sem sentir os olhos dos verdadeiros amantes da arte em minhas costas, posso filosofar que o que me envolvia era justamente o não saber, o não ver, o não compreender aquele estranho objeto pertencente ao século retrasado.

Mais um passo e eu pude ver tudo: o mar, as diferentes casas, alguns barcos, nuvens, montanha. Como tudo na vida, depois que perdemos o encanto do estranhamento, fica difícil manter o interesse. Era só um retrato antigo de um lugar insignificante no século XIX, com pescadores provavelmente iletrados e certamente fedidos que, se um dia realmente existiram, já estariam mortos há pelo menos quatro gerações e, sem dúvidas, muito distantes de mim. Por um momento desviei o olhar para o quadro ao lado e bocejei. Uma garota sentada em frente a um copo de algo que imaginei ser a bebida forte que eu precisava tomar.

“Por que eu tô perdendo meu tempo com isso?”, pensei. Acontece que desde sempre me dizem teimosa. Não posso dizer que concordo. Consigo identificar a teimosia alheia muito facilmente porque essa é uma das características que mais me irritam nos seres humanos e inumanos que já tive o desprazer de conhecer. Mas confesso que olhando para mim mesma, não vejo mais que poucos resquícios de birras injustificáveis.

De qualquer forma, admito que este foi um momento de pirraça. Em minha defesa, altamente justificável. Decidi dar mais um passo em direção àquela que parecia ser a mais tediosa esfinge de que se tem notícia. Mais da metade da pintura era céu e eu entendo como o céu, o universo, o infinito podem significar coisas muito profundas, mas não entendia por que separar um espaço tão grande para um céu de um cinza morto, nublado e desinteressante. Se eu possuísse qualquer dom para a arte usaria cores gritantes, desenharia traços precisos e abstratos, já que não vejo razão para copiar a realidade esalentadora da qual eu me esforço para fugir sempre que consigo boas drogas para isso.

Não, definitivamente eu jamais teria algo em comum com esse pintor de quadros sem gracinhas. Sei que só aquela obra valeria mais do que todos os meus bens juntos, que, naquele momento, se baseavam em uma bicicleta, uma cama de casal e uma geladeira mais velha do que eu, que não guardava muito mais que uma garrafa de água, duas de cerveja, uma maçã e meia cebola murcha. Ainda assim, me achei superior àquele cara e já estava pronta para dar meia volta e mandar toda aquela reflexão à merda.

Antes de sair, resolvi dar mais um passo para garantir que minha análise mal humorada estava completa. Como se tirassem um véu dos meus olhos, percebi que havia muito mais que meia dúzia de gente perdida naquele quadro. Afinal de contas, aquele porto era mais agitado do que eu pensava. Cada pessoa foi delicadamente desenhada com uma quantidade ínfima de tinta, eram pequenas como formigas, mas ainda assim expressavam, de certa forma, uma individualidade própria.

Queria encostar meu nariz naquela tinta antiga e ver quais foram os movimentos que aquele tal Eugène fez para conseguir criar cada minúscula criatura daquele jeito.

Queria descobrir a história de cada um, convidar para um café e me fixar em detalhes desimportantes no rosto deles. Sem perceber, fui me aproximando cada vez mais do quadro, pensando que cada um daqueles pequenos seres tinha um motivo para estar ali, estavam acompanhados de amigos, família, talvez um namorado infiel. Gente que se esbarra sem pedir desculpas ao passar pela rampa tumultuada que servia como deque. Gente que vê um conhecido, mas olha para o outro lado para não ter que cumprimentar. Muita gente.

A cada milímetro que me aproximava, via mais e mais vida naquele quadro que quase me matou de tédio minutos antes. Olhando de perto era possível ver o movimento daquelas pessoas tão pequenas seguindo com suas vidinhas, comprando peixe, levando o filho para ver o mar, passeando de barco. Para onde iriam? Sentiriam calor, frio, fome?

Imersa nesses pensamentos fora de ordem e inundada de um sentimento de solidão e insignificância, fui despertada por um som estrondoso, um alarme irritante que eu não sabia de onde vinha. Um guarda me lançou um olhar de repreensão e apontou para um dispositivo de segurança que servia para evitar que pessoas como eu encostassem nas telas.

Colagem por Beatriz Brandão. Design por Gabriela Oliveira.

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