Clínica Meta Corpus

Fabíola Alves Silva
5 min readJul 20, 2017

--

Foram os dois anos e dez meses mais felizes da minha vida. Depois, ela terminou tudo e foram seis meses de angústia, depressão, dor inenarrável e duas tentativas moderadas de suicídio. Eu repeti diversas vezes que estava disposto a mudar. Ela enfatizou que não queria que eu mudasse
quem era só por sua causa. “Mentira! Toda mulher sonha em mudar um cara!”. Ela deve ter respondido alguma coisa, mas talvez por culpa da porta recém batida na minha cara, fui incapaz de ouvir.

Ao contrário da maioria das pessoas que buscam o isolamento e mergulham no mais profundo nível de cinismo, eu estava aberto à qualquer tipo de auxílio oferecido. Fui em benzedeira, umbanda, xangô, rosa cruz, seicho-no- ie, igreja batista e presbiteriana. Tomei passe, fui batizado uma dezena de vezes, fiz reiki, projeção e mapa astral. Mas a danada tava impregnada em mim que nem pomba gira, trabalho de magia negra, possessão das brabas.

Ela não me queria mais. Nem mesmo qualquer outra coisa que se parecesse comigo. Não deu qualquer explicação plausível pro nosso rompimento, mas estava claro que havia um bloqueio violento à minha figura.

Eu sabia disso porque depois de terminar comigo, ela ficou com oito caras. Nenhum deles tinha barba. Todos pelo menos 5 anos mais jovens ou 5 anos mais velhos do que eu. Nenhum deles tinha emprego estável. Eram em sua maioria músicos mal sucedidos, escritores mortos de fome, atores não remunerados em peças polêmicas e outros artistas underground. Eu era um head hunter de alta competência. Era. Claro que eu fui obrigado a largar o emprego. Com o tempo ficou difícil fazer dupla jornada, trabalhar e investigar a vida da Maitê. Óbvio que eu poderia ter contratado um detetive. Mas isso seria doentio, é claro que eu seria incapaz de fazer algo assim.

Nos últimos suspiros da minha dignidade, fui apresentado à Meta Corpus. Eu estava sentado confortavelmente sobre uma poça de vômito que eu nem mesmo tenho certeza se era meu, e imediatamente estava dentro do target dessa intrigante clínica clandestina.

Inexpressiva, uma jovem usando um coque desajeitado e um decote obscenamente recatado me estendeu um folheto com informações evasivas sobre o “procedimento” que poderia me tirar daquele estado lamentável. Convenceu-me, com um sorriso diabólico, a agendar uma entrevista.

- O que eu estou oferecendo pro senhor é o alívio definitivo pra todos os seus sofrimentos.

- De que igreja a senhora é?

-Não somos uma fundação religiosa ou filosófica, senhor. A minha função é identificar pessoas que, como o senhor, estão sofrendo uma certa inadequação social. O senhor não gostaria de ter uma segunda chance? Mudar completamente sua vida?

Eu ri. Muito. Ela aguardou silenciosa.

- Isso quer dizer que a senhora faz algo parecido com o que eu faço.

- Que seria?

- Head hunter, não? Só que no seu caso, você não tá buscando habilidades pra recrutar. Está farejando almas miseráveis na rua. E parece bem orgulhosa do que faz. Porquê, eu não sei. Não há nada de prodigioso em explorar um desgraçado como eu. E além disso, puta servicinho fácil, hein.

- Venha nos visitar sem compromisso, senhor.

Sedado pela minha própria dor, dirigi-me pontual e obediente à minha entrevista. Fui recebido por uma senhora de coque imaculado e um decote jocoso e perturbador.

- Sua funcionária disse que eu poderia mudar de vida.

- Mais que isso, senhor Artur, o senhor pode escolher a vida que quiser ter. Se essa não deu certo, a gente oferece todos os procedimentos pra que o senhor possa reconstruí-la de uma forma diferente. É claro que precisamos nos certificar primeiro de que o senhor não é um fugitivo, precisamos investigar se o senhor tem pendências com a lei, antecedentes criminais ou se…

- Dá pra senhora ser mais clara? Eu vou o quê? Entrar uma maquininha e virar outro homem?

- Acompanhe-me, por favor.

Fui conduzido à essa salinha com uma tela de LCD. Assisti 20 minutos de um vídeo institucional que explicava os detalhes dos procedimentos, em 3 pacotes diferentes.

-O senhor então se interessou pelo Método Corpus Pleno, certo?

- Me parece que sim.

- Bem, para o Método Pleno, o senhor vai passar por 3 estágios de readaptação mórfica. A primeira é a estética. Nós temos um imenso banco de avatares disponíveis, tanto para licença de uso, quanto de uso permanentemente. É claro que o senhor também pode se sentir livre para trazer-nos referências de feições, timbre de voz, textura de cabelo, talvez de algum parente ou mesmo de celebridades… no entanto, naturalmente, vamos buscar no nosso banco de dados particular o que mais se aproxima do seu ideal estético e discutir os direitos autorais da sua seleção.

-Esse procedimento…

- É doloroso, eu não vou mentir pro senhor. Não há ainda uma espécie de cúpula mágica onde o senhor entra e, dentro de segundos, sai com uma aparência completamente diferente. Os procedimentos são absolutamente seguros, porém, claro, não deixam de ser agressivos. É uma reformulação completa da sua estrutura óssea e muscular. O senhor vai receber o transplante de um corpo completo. E tem que estar preparado para toda a adaptação e possível rejeição do seu organismo à sua nova aparência. O senhor deverá tomar imunossupressores por algum tempo para que o tecido sintético não sofra rejeição. Com o tempo, os médicos poderão reduzir as doses dos medicamentos. Mas, em princípio, o senhor deverá procurar ambientes estéreis para evitar infecções oportunistas. É por isso também que é rigorosamente obrigatório um acompanhamento psicológico durante a adaptação do novo corpo e inclusive da sua nova identidade. Só então,
iremos para o próximo estágio.

E eu passei pelo primeiro estágio… e pelo segundo… e pelo terceiro. Tornei-me mais jovem, imberbe, míope e mineiro. Dois meses de repouso quase absoluto, um mês e doze dias com a sensação de ter sido virado do avesso com o auxílio de um pé de cabra e 72h de fonoaudióloga pra aprender como que se engol metádaspalavra.

Eu tinha uma agenda de novos hábitos para seguir. Apenas um compromisso não foi alterado da minha agenda: seguir a Maitê. Não demorou muito pra eu perceber que tinha cometido um grande erro. Embora eu ainda não saiba ao certo o que estragou meus planos primeiro: a incrível recém adquirida semelhança com um psicopata procurado pela polícia; a disfunção erétil pós-operatória que rendeu uma série de processos perdidos (aparentemente, era uma característica que fazia parte do perfil do avatar escolhido. Leiam sempre as letras miúdas dos contratos…), ou a espantosa revelação da Maitê, que resolveu assumir sua homossexualidade. E o pior de tudo é que eu mal começara a pagar as parcelas do meu pacote Meta Corpus Pleno.

- Eu não acredito que você é lésbica… depois de tudo o que eu fiz por você!

- Quem é você?

- Ah… desculpe, sou eu, o Artur! Você num deve tá me reconhecendo porque eu passei por uma transformação mórfica e ainda tô recuperando minha coordenação motora. Mas isso não é importante agora. Será que a gente pode sentar, tomar um café, convers… o que cê tá fazendo?

- Ligando pra polícia.

- Isso é um “não”?

Depois desse encontro, só existia uma coisa possível a fazer. Procurar a Meta Corpus e me submeter a um novo procedimento que levou 18 meses para me transformar na mulher que a Maitê iria amar. Durante o meu repouso, eu repetia para mim mesmo “toda mulher sonha em mudar um cara”.

P.S.: A Maitê ainda não me ama. Mas meu corpo ficou show.

Capa por Nova Heart, design by Gordura

Acesse aqui a quinta edição de Granada.

Estamos também no Facebook e Twitter.

zinegranada.com.br

--

--