A Dança Permanece Acesa

Filipe Evans
Granulações com Clarice Lispector [1]
3 min readMar 13, 2021

Texto de Filipe Evans

No último dia que o encontrei, ele estava cabisbaixo, extremamente pensativo, incerto sobre o nosso encontro. Eu nem precisei chegar para saber que ele precisava de mim. Já percorro por aquele corpo desde quando ele só me experimentava entusiasmadamente ao som da guitarra de seu pai, ainda de modo despretensioso para com o que veio se tornar atualmente.

Conheço cada extensão de seu corpo, e se antes eu ocupava um país nele, hoje tenho liberdade para circular em todos os continentes. E olha que sou viajada, já conheci muitos países de diferentes tempos, mas na terra dele eu conseguia acessar fronteiras que outros convinham de manterem fechadas a mim.

Apesar de no início da nossa relação eu não ser tão levada a sério, nosso envolvimento foi crescendo amistoso, não éramos óbvios um ao outro, é assim que todas as minhas relações começavam. Ele não vinha a mim como quem busca o divino, juntos nos tornávamos a própria divindade, éramos sagrados de nós mesmos, de uma religião inexistente. Ele não me queria para fazer chover, precisava apenas que eu me diluísse nele, e era de uma perfeita homogeneidade que não seria mais possível reconhecer nossas individualidades individuais. Havia apenas a nossa individualidade conjunta.

“Eu te amo”, me disse. Foi quando eu percebi que já havia me tornado muito mais que um simples mover, eu já não era apenas músculos contraídos, deslocamentos no espaço ou mesmo reverberações sonoras. Nós éramos nós, sendo um.

De alguma forma eu o preenchia com o sentimento que lhe faltava. Ele não me via, e, mesmo assim, com toda sua ingênua humildade, ele me sentia. Eu o tocava apesar de ele não conseguir me tocar. Nosso amor era shakespeariano. Arriscado, perigoso, proibido, ilícito. Não éramos aceitos por sua família. E ele poderia morrer por mim, e eu sabia que se morresse pra ele, de certa forma ele também morreria pra si. Eu não precisava dele para viver, mas sua vida tinha necessidade de mim.

E nesse último dia em que o encontrei, seu pensamento vagava em questões típicas humanas, questões essas que não consigo interferir, são maiores do que eu.

Tinha um tom de despedida esse encontro. Não era a primeira vez que eu era abandonada. Todos que um dia me deixaram foram por questões humanas. Eu jamais os entendi, apenas aceitava, essa era minha condição de vida, e ser humano era a dele. E neste dia, ele me deixou dizendo que eu não lucrava o bastante, para pagar o preço que sua escrupulosa vida humana exigia. Já não aguentava a pressão da família para ser alguém, as seguidas e intermináveis cobranças da existência e o peso de carregar tudo sozinho, eu até tentava ajudá-lo a segurar, por algum momento conseguimos, mas o peso só aumentava, até que o fardo de tão pesado se tornou mais forte do que nós, já não conseguimos sequer arrastá-lo.

Foi então que, da totalidade de seu corpo fui, reduzida à ilha, visitada apenas para feriar. Posso ser reduzida a um simples grão de areia, mas enquanto seu sangue correr, seu coração pulsar, e sua memória existir, minha função irá muito além da desopilação. Eu serei a mesma, menos intensa, mas fogo queima independente da intensidade. E a chama permanece acesa.

Desenho: Filipe Evans
Ilustração: Filipe Evans

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Filipe Evans
Granulações com Clarice Lispector [1]

Artista, produtor e professor que se expressa através da dança, desenhos e escrita.