2 mil e tantos cavalos calados

Dayse Cardoso
Graphia de Luz
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4 min readApr 24, 2021
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Por Dayse Cardoso em outubro de 2020

Eu tenho 2 mil e tantos cavalos calados, como disse Raul Seixas. Aparentemente calados, eu acrescentaria. Pra quem é sensível, a vibração é um grito. Senti um certo incômodo por um aparente silêncio que me ocorre, volta e meia, nas redes, muito em virtude do mundo interior em solitude que acesso, em excesso, confesso, mas que me embala, me guia, me acalenta.

Um quadro de ansiedade me assolou e, depois de especular sobre as possíveis causas, percebi que, além de não estar respeitando meu tempo de processamento de experiências, era a necessidade de expressão que me instigava mais do que a exposição através de redes sociais onde percebo esse julgamento, essa cobrança de atenção, de engajamento…

Refletindo sobre comportamentos fascistas e intimidadores do dia a dia, além do desgoverno público e da violência que nos mata Natureza, índios, pobres, pretos, mulheres e lgbtqi+ faz tempo, percebo que me incomoda um estilo démodé de pensar o outro julgando sua vida com o que é postado na pegada “se não postou não existiu”. Está proibido ser zen. Está proibido usar filtro. Está proibido calar. Está proibido falar… “Rexitégui” sei lá.

O compartilhamento, em redes sociais, de experiencias da Vida, de conquistas, de dores e alegrias comuns a tantos de nós, de projetos, arte, nos informa, nos inspira, nos indigna, nos encoraja, nos amplia a possibilidade de amar e, de certa forma, nos aproxima. A utilização desses meios de forma consciente é útil mas, ao mesmo tempo que é importante posicionar-se, justificar-se é um saco e nos suga a energia. Há uma incoerência em atitudes haters vindas de ditos lovers talvez imperceptível. Modelos de liberdade, julgamentos rasos que coagem e desacreditam certos tipos de expressão em vez de focar no que ou em quem realmente precisa ser combatido… Não sei se me fiz entender …É que considero um disfarce pra covardia vociferar contra tudo e todos numa pretensa militância onde ocorre uma repressão ainda maior por conta da capa de super herói que se utiliza.

Muitas vezes em vez de notas de repúdio catárticas pra encontrar abrigo no peito de meu traidor ou pra não correr o risco de ser aprisionada, encaixotada numa forma, num momento, prefiro colocar tudo no liquidificador e espremer e coar até virar arte e a cura que se faça seja em forma de movimento, imagem, poesia, palavra, verso, rima, som, vida, cuidado, amor, humor. Compartilhadas em rede ou não, a arte sobrevive e faz viver. Há sempre alternativas que não nos agridem e preferir a saúde mental não é crime.

A Paixão é cega mas a Amizade é clarividente e é na amizade que nos sustentamos e, fundamentalmente, na amizade com nós mesmos. O tão batido amor incondicional. Nas trincheiras não é bom atirar em quem está ao nosso lado. Na dúvida (já que parece tão relevante) é bom perguntar e se certificar porque às vezes não é arrogância, indiferença ou soberba mas ansiedade, cansaço e tristeza. Não é omissão, é sobrecarga. Não é frescura, é depressão. Não é fuga do trabalho, é Síndrome de Burnout. Não é covardia, são prioridades. Não é viagem ou alienação, é um caminho que não é o seu.

É preciso ajustar o comportamento com o ambiente social que se tornou tão mais letal e, agora com o isolamento, está prioritariamente virtual que é preferível que se faça sem ferir a si mesma(o) e a singularidade de cada um(a) sempre em redescoberta. Eu aposto num mundo realmente inclusivo. Além digital, cósmico.

Textinho tirado de uma análise de sonho:

Saber quem se é mesmo se encaixando. Seja fiel a si mesmo, mas tente descobrir como encaixar sua singularidade em um quadro mais amplo. Ajuste seu comportamento ao seu ambiente social, a fim de se dar bem com as pessoas ao seu redor.

Cavalos Calados — Raul Seixas

O termômetro registrou,
a enfermeira confirmou,
a minha morte aparente, a minha sorte, minha camisa rasgada no
peito, escorrendo óleo diesel.
O relógio alarmou,
a TV anunciou,
a minha morte, preta e branca, a sua sorte, e o seu durex já não
cola, já não basta o tapa-olho, eu tenho mais um por entre as pernas
cabeludas, olhos e antenas sobressalentes.
O meu pulso não pulsou,
o aparelho aceitou,
a minha morte aparente, a sua sorte, minha garganta sem voz.
acordo semi-lúcido,
entre a morte e a morte,
relembrando onde perdi a minha língua atrevida
pelas mortes,
pelas vidas,
pelas avenidas,
pelas Ave Marias cantadas em coro no meu violão.
Pelas ruas sem chão!
Meu corpo tem dois mil e tantos cavalos calados…

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Dayse Cardoso
Graphia de Luz

Yoguini, reikiana, fotógrafa, mãe, investigadora em dança e palhaçaria e se arrisca em escrever.