GRIFO NOSSO: “Crônicas da travessia”, de Paul B. Preciado

Isadora Attab
grifapodcast
Published in
3 min readApr 22, 2021

--

A série GRIFO NOSSO foi criada na intenção de fortalecer a luta e resistência em tempos de isolamento social: trechos de literatura, artigos, poesia, e o que mais for de bonito que torne mais fácil a missão de não perder ternura. Esta é a leitura da parte “Crônicas da travessia” na introdução de Um apartamento em Urano, de Paul B. Preciado.

Paul B. Preciado é um filósofo e escritor feminista transgênero, que escreve sobre filosofia de gênero, teoria queer, arquitetura, identidade e pornografia. Reconhecendo-se anteriormente como mulher cis lésbica, Preciado começou, em 2014, uma trajetória de “transição lenta” com a autoadministração da testosterona, documentada em seu Testo Junkie (2008), que gerou muitas de suas contribuições teóricas sobre a indústria farmacêutica.

Aluno de Jacques Derrida, colaborou com o desenvolvimento inicial da teoria queer na frança, participando de um grupo de escritores liderado por Guillaume Dustan, conhecido como “Le Rayon Gay”. Manifesto contrassexual (2002), é inspirado nas teses de Judith Butler, Donna Haraway e Michel Foucault, e reflete sobre a subjetivação e a identidade, a construção social e a política do sexo.

Paradoxalmente, renunciei à fluidez porque desejava a mudança. A decisão de “mudar de sexo” é acompanhada necessariamente por aquilo que Édouard Glissant chama de “tremor”. A travessia é o lugar da incerteza, da não evidência, do estranho. E isso não é uma fraqueza, é uma potência. “O pensamento do tremor”, diz Glissant, “não é o pensamento do medo. É o pensamento que se opõe ao sistema.” Em setembro de 2014, dei entrada num protocolo médico psiquiátrico de redesignação de gênero na clínica Audre Lorde, em Nova York. “Mudar de sexo” não é, como querem os guardiões do antigo regime sexual, dar um salto na psicose. Mas também não é, como pretende a nova gestão neoliberal da diferença sexual, um simples trâmite médico-legal que pode ser realizado durante a puberdade para dar passagem a uma normalidade absoluta. Um processo de redesignação de gênero numa sociedade dominada pelo axioma científico-mercantil do binarismo sexual, onde os espaços sociais, trabalhistas, afetivos, econômicos, gestacionais são segmentados em termos de masculinidade ou feminilidade, de heterossexualidade ou homossexualidade, significa cruzar aquela que talvez seja, junto com a da raça, a mais violenta das fronteiras políticas inventadas pela humanidade. Atravessar é ao mesmo tempo saltar um muro vertical infinito e caminhar sobre uma linha traçada no ar. Se o regime hétero-patriarcal da diferença sexual é a religião científica do Ocidente, então mudar de sexo só pode ser um ato herético. À medida que as doses de testosterona aumentavam, as mudanças ficavam mais intensas: os pelos do rosto não passam de um detalhe em comparação com a contundência da mudança que a voz provoca no reconhecimento social. A testosterona produz uma variação da espessura das cordas vocais, músculos que, ao modificarem a sua forma, mudam o tom e o registro da voz. O viajante do gênero sente a mudança na voz como uma possessão, um ato de ventriloquismo que o obriga a identificar-se com o desconhecido. Essa mutação é certamente uma das coisas mais belas que já vivi. Ser trans é desejar um processo de “crioulização” interior: aceitar que só nos tornamos nós mesmos através da mudança, da mestiçagem, da mescla. A voz que a testosterona propulsiona em minha garganta não é a de um homem, é a voz da travessia. A voz que treme em mim é a voz da fronteira. “Compreendemos melhor o mundo”, diz Glissant, “quando trememos com ele, pois o mundo treme em todas as direções.”

>> Veja também: uma conversa muito honesta e divertida (e cheia de contradições!) entre Paul Preciado e Caetano Veloso, na FLIP 2020

Esse é o GRIFA PODCAST: aproximando teoria feminista da prática revolucionária cotidiana, em todas as plataformas de streaming.

Colabore para que o GRIFA continue no ar através do nosso financiamento coletivo e recorrente: com qualquer valor mensal você nos ajuda a manter esse projeto tão querido no ar. Acompanhe a gente no instagram | twitter | canal de transmissão do telegram | newsletter.

Comprando qualquer livro na Boitempo a partir desse link, uma pequena porcentagem é revertida pro Grifa e você não paga nada a mais por isso. Aproveite o cupom de 20% de desconto em todo o catálogo: GRIFA20.

--

--