Precisamos de linhas editoriais?

Marcos Ramon
Grupo Interface
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5 min readFeb 5, 2014

Recentemente ouvi um debate na instituição em que trabalho sobre a questão da publicação a partir de linhas editoriais bem definidas. A discussão começou porque um professor contestou um edital de pesquisa em que a publicação de um artigo em revista acadêmica dava mais pontos ao candidato do que a publicação de um livro. O argumento de quem defendia o edital era que a revista acadêmica possui regras de seleção e uma proposta editorial enquanto que para se publicar um livro hoje em dia já não se precisa de editores, você pode se autopublicar. Mas qual é realmente o problema com a autopublicação? Vou analisar aqui as questões mais comuns.

Pode surgir muita coisa ruim e incongruente por conta da falta de critério do autor?

Sim, mas isso também pode acontecer quando se tem um conselho editorial¹. Não temos garantia alguma de que um conselho editorial vá, de fato, analisar ou valorizar a qualidade do que é publicado por grandes editoras ou por revistas acadêmicas de prestígio. Mas essas editoras (no caso dos livros, por exemplo) investem em forte publicidade e os seus produtos acabam tendo grande atenção da crítica e, consequentemente, do público. Um exercício interessante: ir a um sebo e passar pela lista de antigos best-sellers de que você nunca ouviu falar. Existem muitos. E o que aconteceu nesse caso? A linha editorial falhou? Ou eles acreditavam (e nos fizeram acreditar) que selecionaram o que havia de melhor naquele momento?

Nunca iremos produzir nada significativo sem um filtro editorial.

Nem sempre existiu a necessidade de uma proposta editorial que autorizasse o que devia ser produzido e/ou publicado. Ou você acha que Schopenhauer e Nietzsche tinham contrato com a Amazon? O fato desses autores terem se publicado, bancando parte de seus próprios livros, não fez com que a seriedade e a qualidade de suas obras fossem perdidas. O mesmo se pode dizer de autores que nem chegaram a ver sua obra publicada (às vezes por opção), como Kafka e Fernando Pessoa. Não é a editora que faz o bom livro, é o autor.

Hoje as pessoas não têm simancol e acham que qualquer texto é bom pra se mostrar pros outros.

Concordo que, tendo muita gente pretensamente apta a publicar seus próprios livros e textos atualmente, a probabilidade de coisas ruins entrarem no mercado são bem maiores. Precisaríamos, para evitar esse tipo de coisa, de um pouco mais de investimento pessoal para entendermos o que estamos fazendo e o porquê. Mas essa (a educação para a escrita e para a leitura) não é uma tarefa que cabe às editoras. A questão é também numérica, e já que como não temos tempo para ler tudo, deveríamos aprender (em casa ou na escola) como fazer essa seleção do que ler ou não. Simplesmente impedir que mais pessoas possam publicar o que querem justamente na época em que finalmente os custos para divulgação de ideias e projetos diminuiu drasticamente, não me pareceria uma vantagem, mas um atraso absurdo.

Como eu vou ler tanta coisa?

Você não precisa ler tudo o que existe. A revista acadêmica, por exemplo, tem uma função bem específica. Já ouvi pessoas dizendo que ninguém lê essas revistas vinculadas aos programas de pós-graduação, mas isso não é verdade. Eu, por exemplo, por conta do Doutorado, busquei inúmeras revistas acadêmicas que me ajudaram a compreender determinados tópicos que eu não teria tempo de compreender se tivesse que ler todos os livros dos autores especializados no tema. As revistas acadêmicas são necessárias em contextos específicos, mas eu não leria uma revista dessas da mesma forma como leio um conto de Borges ou escuto música da década de 1970. São coisas muito diferentes.

Mas e aí, é justo um artigo acadêmico valer mais pontos do que um livro?

As regras de um edital são o que são e o que elas precisam é estar claras, já que a discussão sobre o que justo ou equânime é muito mais complicada do que o que um edital de seleção se presta a fazer. Mas é inegavelmente decepcionante para quem passou cinco anos fazendo uma pesquisa que gerou um livro, ver o seu trabalho ser menos valorizado (para a pontuação no edital x) do que um artigo que foi escrito em 20 dias e aprovado pelo conselho editorial porque o autor citou os autores da moda e agradou aos avaliadores. Mas essas são regras de um jogo chamado vida acadêmica. Se você começou a jogar esse jogo você já sabe como ele funciona. As alterações nessas regras até são possíveis, mas não serão drásticas e nem rápidas. Ou você joga o jogo e se esforça para influenciar mudanças que você acredita que são necessárias ou então vai brincar de outra coisa. Você escolhe.

Alguma conclusão?

A declaração recente de Peter Higgs (ganhador do prêmio Nobel de Física pela descoberta do bóson de Higgs) de que não conseguiria se desenvolver no mundo acadêmico de hoje por conta da necessidade de resultados ( i.e. publicação de artigos) é sintomática e nos mostra que as linhas editorias podem criar distorções terríveis não só nas revistas acadêmicas supervalorizadas, como também no surgimento de livros ruins — mas com um marketing intenso que nos leva a acreditar que eles são bons — que podem ser encontrados nas livrarias mais prestigiadas, indo desde uma fanfic estúpida a um pseudo-livro-nerd feito pra aproveitar a moda dos geeks e vender coisa que tem valor questionável².

Às vezes eu ainda acho que uma editora pode ser melhor (se for uma editora séria, preocupada com a qualidade do que é produzido e não só com o índice de vendas) do que não ter editora nenhuma, principalmente pra construir uma relação mais clara entre valor (cultural) e valor (preço). Mas as vantagens da autopublicação não podem ser negadas, dada a possibilidade de inserirmos mais e mais pessoas com boas ideias em um mundo em que anteriormente deveríamos buscar autorização para entrar. Uma convivência entre as duas coisas é, pra mim, a melhor opção, e qualquer tentativa de negar alternativas não trará benefícios, mas retrocesso.

[1]: Sokal e Bricmont já mostraram, em Imposturas Intelectuais, as coisas estúpidas e incongruentes que podem ser escritas por intelectuais falastrões e publicadas com significativo sucesso por importantes editoras.

[2]: Sim, estou falando daqueles livros derivados de games, como Assassin’s Creed, e os livros derivados do trabalho editorial dos influenciadores do momento.

Originally published at https://marcosramon.net on February 5, 2014.

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Marcos Ramon
Grupo Interface

Professor e pesquisador nas áreas de estética, cibercultura e ensino. Produz o podcast Ficções. https://marcosramon.net/