Kimani, de menina doce à poeta ácida

Guia Maria Firmina
guiamariafirmina
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5 min readApr 16, 2019

Kimani é a expressão da menina Cinthya Santos, doce e afetuosa, de 26 anos e moradora da região do Grajaú. Duas mulheres em uma só, imagina a potência disso!

De segunda à sexta ela trabalha promovendo oficinas de literatura, poesia, eventos, mercado de trabalho, reuniões socioeducativas em Vargem Grande (Parelheiros), um bairro marginalizado e muito a parte de tudo que acontece em São Paulo. “Eu faço de segunda à sexta um trabalho de base para que os jovens não caiam na biqueira ou não tenham isso como uma possibilidade”, conta a poeta.

Mas, não se engane, a dócil Cinthya desaparece quando a Kimani está com um lápis ou um microfone nas mãos. Justo a Kimani, nome de origem africana que significa menina dócil, meiga e afetuosa, nome que também traz de volta a sua ancestralidade que foi perdida ou nunca encontrada. Cinthya é a menina meiga que vocifera as suas dores, as dores de outras mulheres e de tantas outras pessoas através de Kimani.

A artista entrou no universo das batalhas de poesia quebrando tudo! Em 2017 começou a frequentar e participar do Slam da Norte e no final do mesmo ano já estava como finalista do Slam BR, competindo por uma vaga no mundial. Em março deste ano ela viralizou na internet com o poema falado Manifesto — que essas cenas permaneçam apenas na ficção, produzido para anunciar a chegada da série The Handmaid’s Tale, inspirado no livro O Conto da Aia de Margaret Atwood, no Globo Play. O manifesto de Kimani foi criado para falar de uma ficção, mas em seu discurso há muito mais tons de realidade do que todas nós gostaríamos.

De 2017 para cá, muitas coisas mudaram para Cinthya, desde a sua relação com o trabalho, o próprio trabalho, até o seu autorreconhecimento como mulher preta e artista. Vem descobrir mais um pouco sobre essa mulher incrível com a gente:

Quando você começou a escrever?

Eu sempre escrevi, desde pequena, fui privilegiada de estar nesse espaço da arte e da cultura. Cresci com meu pai tocando violão para mim, então isso foi sempre natural e confortável. Sempre escrevi cartas de amor para os meus pais, depois para os namoradinhos, sempre foi algo muito gostoso escrever.

Quando você começou no Slam?

Comecei em 2017, quando estava passando por uma frustração muito grande em um relacionamento. Fui traída com uma mana japonesa e isso mexeu muito comigo porque eu estava em um processo de embranquecimento, de alisar o cabelo, então foi um choque, porque eu nunca seria aquela branca linda, nunca teria aquele cabelo.

Abençoado seja o fruto! Criada para servir a qualquer custo. Só reproduzir, só reproduzir

E o que foi que te levou para o Slam?

Foi esse processo de procura e de tentar ressignificar alguma coisa. Conheci a oficina de mulheres pretas da Ryane Leão, que hoje é minha madrinha de poesia, e lá tive contato com a escrita e a poesia marginal periférica. Ali eu entendi esse recorte de que a escrita de mulheres negras parte de de um ponto diferente das mulheres brancas.

E como foi essa experiência?

Eu me apaixonei pelo Slam! No final de 2017 eu fui finalista no Slam BR, sem entender ainda o que era esse processo, foi tudo muito rápido e terminei como vice-campeã, faltou muito pouco, só 0,10 pontos para eu estar na França duelando internacionalmente. Foi um ano de muito aprendizado e descobertas, foi muito louco, muito novo e muito rápido, mas acredito muito que tinha que ser. E desde de 2017 eu venho trabalhando como poeta, realmente me entendendo como artista.

Como você se sente vendo o seu trabalho na maior emissora de TV do país?

Quando eu tenho essas conquistas fico feliz, mas ao mesmo tempo me sinto confortável de ocupar esses espaços também. Estar pela manhã fazendo um trabalho de base com jovens na periferia e à noite em lugares conceituados ou que são frequentados por pessoas que têm acesso muito mais fácil do que a gente de qualquer quebrada, é algo normal para mim. Tenho a humildade de dizer que vou em qualquer quebrada fazer o meu discurso de um jeito muito ostensivo, muito verdadeiro da mesma forma que faço esse discurso com a mesma força e intensidade em palcos grande. O palco que estou ocupando naquele momento não me diz muito sobre o quão longe estou chegando, o que vale são as minhas palavras. Posso fazer isso em qualquer lugar que o peso será o mesmo.

Oxalá! Preto sabe o que é ter medo de ser morto.
Mas pede pras voz parar, as voz da intuição,
porque elas sempre diz “É mais um corpo preto no chão
Sinhá, porque eu vejo os meus morrendo todo dia?
(…) Eu cansei de perder a batalha sem nem ter entrado na Guerra!

Por que você acha que o vídeo teve tantas visualizações?

Eu acho que viralizou porque sou muito incisiva nas minhas palavras, uma pessoa que gosta de dialogar também fora do contexto do Slam e da escrita, mesmo que na escrita me expresso muito mais diretamente, ferozmente, e consigo ser crítica, irônica e debochada nos meus textos. Também pode ser sido porque fui muito criticada pelo meu discurso, mas por outro lado, muitas entenderam todas as críticas naquele texto que tem muito da série, mas tem muito mais da não-ficção.

Quem são as mulheres que te inspiram?

Eu me inspiro muito em mulheres mais velhas e mulheres mais novas, observo muito as meninas que estão vindo aí nessa geração feminista, que vão com os olhinhos brilhando para o Slam e dizem “E aí, Kimani, olha a minha poesia, fogo nos homi, fogo nos machistas”. As minhas alunas, que estão na faixa de 14/15 anos me inspiram porque me ensinam muito também. E as mais velhas por serem as minhas ancestrais, minha mãe, minha madrinha, as minhas gerentes do trabalho… São esses dois extremos de mulheres que eu olho e falo “quero ser como”. Elas me inspiram.

Por que usar um outro nome para se expressar artisticamente?

Eu estava escolhendo um vulgo porque a gente do rap tem isso de assumir uma persona para de alguma forma ressignificar a nossa existência, ou dar nome a todo esse processo de transformação que a gente sofre quando está em um palco ou com o microfone na mão, e de algum jeito jogar esse responsa e essa fala toda para personagem e não para nós mesmo. E esse começo de mostrar os meus textos foi muito difícil para mim. Ficava pensando “nossa, mas a Cinthya que era católica ta falando isso agora? Não, é a Kimani que está falando”.

Você está produzindo um EP, como é esse novo projeto?

Ele ainda não tem nome, talvez Senha Mística, ou algo assim. Nele eu trago baião, samba, MBP, mas nada de RAP, e entre uma música e outra, intercalo com algumas poesias. Estamos começando a gravar agora, mas a previsão é que seja lançado até o final do primeiro semestre deste ano.

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Guia Maria Firmina
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Projeto criado para divulgar o trabalho de mulheres artistas. Por Taís Cruz e Victória Durães