A falsa despolitização em Os Incríveis 2

Guto Leão
Guto Leão
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8 min readJun 29, 2018

Atenção! Esse artigo contém spoilers!

Sem deixar nada a desejar ao primeiro filme, Os Incríveis 2 chega aos cinemas com um roteiro todo amarrado, personagens ainda mais carismáticos e uma sequência de ação frenética, digna de um bom filme de ação dos anos 90. Mas o que não se esperava é que uma inofensiva animação da Pixar carregasse no fundo um viés político tão forte e escancarado.

Do que trata filme?

Ao longo de suas duas horas a narrativa o filme trabalha de maneira exemplar com a dicotomia do incrível versus o mundano. Incrível na figura de 5 heróis (os 5 membros da família), que representam a solução fantástica, imediata e infantil para os problemas da humanidade. Mundana na figura da clássica família americana que fracassou no sonho, o famoso American Dream, e agora busca uma maneira de sobreviver para pagar o aluguel. Não é qualquer obra que consegue criar diálogos e sequências de ação fortes para amarrar esses dois conceitos e nos presentar com um entretenimento tão prazeroso.

Talvez numa referência ao clássico Guerra Civil da Marvel, a trama do filme anterior se costurou em torno da proibição, promovida pelo governo, da ‘profissão’ herói. (Importante! Note como a figura “O Governo” começa e termina como um antagonista na trama da história) Sobra aos heróis ‘falidos’ a enfadonha vida cotidiana de cidadãos comuns que buscam alinhar o fardo de seus poderes com os simples afazeres do lar. Isso leva a sequências muito engraçadas como na graciosíssima luta entre o bebê Zezé e um gambá. Zezé, vidrado numa história policial que assiste na TV, vê num gambá que come no lixo da porta de sua casa um perigoso ladrão e parte para ‘enfrentamento do mal’ (um gambá!) com seus poderes incríveis. Aliás, são várias sequências que retratam o fascínio da família americana pela TV. A cena culmina no desespero do pai que tenta impedir a engraçada luta entre o gambá e o filho e termina com a previsível derrota do ‘vilão’ e com um orgulhoso pai que admira os poderes do filho mas luta para escondê-lo da família, temendo o pior. Afinal, ter poderes é um crime nesse mundo fictício. Culpa do governo!

Em uma cena mais singela e despretensiosa, a adolescente Violeta passeia até a geladeira ao choros para pegar um belo pote de sorvetes e se esbaldar na sua infelicidade. Revoltada, ela usa seu poder de invisibilidade, externalizando a vontade de todo adolescente diante da difícil tarefa de viver as primeiras paixões, tema muito bem explorado em ‘As Vantagens de Ser Invisível’. Sem falar das cenas que fazem um uso muito criativo dos poderes do personagens e não deixam em nada a desejar sobre os melhores filmes de super-heróis da Marvel e DC.

No filme anterior os heróis conquistam, de maneira muito parca, a liberdade de exercer sua ‘profissão’ através de um programa totalmente controlado pelo Governo (Atente! Governo mal = Controle). Esse segundo filme começa com uma excelente sequência de ação que termina numa grande frustração dos heróis. Para os heróis o dever foi cumprido, pois várias vidas foram polpadas. Até mesmo uma espécie de Capitólio, uma grande construção do governo, é poupada da destruição graças aos esforços dos heróis. Porém, novamente o ‘incompetente’ Governo entende que o trabalho dos heróis foi um grande fracasso, afinal o vilão em questão foge. Ou seja, para o governo a missão não foi cumprida. Sem falar nos estragos urbanos causados pelos heróis (olha a referência à Guerra Civil da Marvel novamente!). O programa dos heróis é suspenso e a família de heróis se vê novamente diante da mediocridade da vida mundana.

O grande empresário, a solução de todos os problemas!

Logo na sequência inicial, a animação apresenta um personagem que surge como a solução para o problema dos heróis em decadência. O filme não poupa esforços para esbanjar os atributos positivos do personagem que aparece para resolver todos os problemas. Do alto de seu ENOOORRRRRME prédio, e ostentando toda a sua riqueza material o grande empresário propõe, com sua irmã (outra importante personagem da história), a solução para resgatar os áureos tempos em que os heróis lutavam pela humanidade e cumpriam o seu dever de bondade! Afinal, o maior problema da humanidade são os crimes que ocorrem nos becos e ruas da cidade, certo? (hahahaha desculpem a ironia).

O plano.

Instalar câmeras de alta tecnologia nos trajes do heróis para filmá-los nos momentos mais oportunos e altruístas de seu trabalho. Esse é o papel da irmã do super empresário que aparece no filme como coadjuvante do ‘salvador da pátria’. A este, resta a talentosíssima habilidade de ‘vender’ a narrativa de que os heróis são importantes e articular um grande lobby com os canais de TV e personalidades importantes do cenário político para consolidar a ideia de que a legalização dos heróis é a solução dos problemas da humanidade. Note que em nenhum momento fala-se sobre o que o empresário ganha em troca de todo o seu esforço. Para todos os efeitos, ele é um personagem muito legal e carismático que está fazendo isso por pura nostalgia, afinal seu pai era fã de super heróis. Esse empresário é um cara legalzão… maneiro… descolado. Diferente de ‘todos esses políticos que estão aí’! Esse personagem te lembrou alguém?

Político, empresário, ou a mesma coisa? Comparação entre João Dória e o empresário de Os Incríveis 2.

Valorização do Consumo

Num ‘bondoso’ gesto o empresário empresta uma de suas 20 mansões para a proletária sofrida família incrível. Não faltam cenas de demonstração da satisfação diante de todo aquele luxo, tão incomum àquela sofrida família.

Fica claro que a recompensa esperada e objetivo de toda família americana é o acumulo de material e a busca por uma vida luxuosa. Quem não gosta, heim?

Cenas do filme. Família Incrível esbanja sua moradia temporária.

Feminismo, mas sem mi mi mi!

Observação: Essa questão deve ser tratada por quem de fato deve deter a narrativa desse assunto, uma mulher. Mas como estou escrevendo premeditadamente, sem ler nenhum artigo ter tratado desse assunto ainda, me dou à liberdade de falar sobre o tema.

O filme acerta em dar representatividade ao tema colocando Helena Pera, a mãe da família, no protagonismo do filme. Numa cena muito legal, ela passa em alta velocidade em sua moto incrível rumo ao seu dever enquanto uma admiradora berra para ela: “— vai empoderada!” (ou algo assim) Que legal ver isso num filme tão popular.

No entanto, o filme não se esforça para aprofundar esse debate tão sensível e necessário. Parece que esse tema foi colocado lá só pra cumprir tabela. Num diálogo entre a protagonista e a irmã do empresário a irmã pergunta à Helena como ela está se sentindo, já que deve ser muito bom para ela não estar como coadjuvante do seu marido. Nessa hora você espera uma puta confirmação da protagonista e um aprofundamento do tema. Eu não lembro exatamente do que foi dito no diálogo, mas me pareceu que Helena dá uma diminuída no debate num discurso meio…. “sem mi mi mi”. Que perda de oportunidade :(

Para além da questão do feminismo, nesse mesmo diálogo, a irmã revela que o grande patrimônio da família bilionária é fruto de seu esforço. E dá um diminuída no papel do irmão como um mero vendedor de toda a sua genialidade tecnológica. Esse é um ponto importantíssimo para a construção ideológica do filme, pois nesse ponto fica quase claro que irmã é cheia de ideais. Ela é um gênio e acredita em algo, mas ainda não fica muito claro o quê. O importante é que cria-se uma dualidade entre os dois irmãos. Um é o empresário vendedor, gestor, com a aparência de um cara bonzinho. A outra é uma genia da tecnologia, com ideais e com uma aparência amargurada. Ainda no diálogo, Helena (protagonista) deixa clara a sua opinião de que saber vender é mais importante do deter o conhecimento. Pois somente vendendo é que se consegue resultados! Mais uma dualidade se constrói: A dos ideais obscuros (na figura da irmã inteligente mas amargurada, que mais para a frente se revela a vilã da história) versus o mercado e seus resultados claros (na figura da heroína protagonista que está do lado do empresário. Afinal, ela ganhou uma puta mansão!). Esta dualidade é confirmada mais uma vez em uma cena apoteótica próximo ao final da história. A vilã faz mal agouros para o irmão adjetivando ele como um adorador da “livre iniciativa”, colocando ela mais uma vez no papel de uma ideologia mais controladora e talvez até mais alinhada com o poder do Estado.

Diminuição do papel político.

Em algumas cenas, o filme coloca um peso negativo e de descrença na imagem do político tradicional. Em sua primeira missão à serviço do empresário, por exemplo, Helena está vigiando o prefeito da cidade inaugurar um novo trem, tipo um maglev futurista. Não faltam adjetivos que diminuem e menosprezam o político. A protagonista, ou a irmão do empresário (não lembram) chegam a dizer que político só sabe fazer isso.

Em uma outra passagem do filme, meio que em segundo plano, uma pessoa da TV, se não me engano, chega a dizer algo assim: “- mas também, até um macaco tem mais credibilidade do que um político”, reforçando ainda mais a descrença nas instituições governamentais.

Sejamos críticos! Do que REALMENTE trata o filme?

Você pode assistir o filme sem se preocupar lhufas com os ideais apresentados por ele. A história tem todas os elementos para proporcionar um entretenimento muito bem pago. Daqueles que você fica exaltando como filmaço depois de se empanturrar com uma deliciosa pipoca de cinema. Mas ao pensar só mais um pouquinho sobre o assunto, talvez seja possível entender por que o filme ataca tanto a classe política. Por que será que ele não se aprofunda e não faz críticas sobre as pautas políticas apresentadas sob os termos “livre mercado”, “machismo” entre outros ao longo da história?

A crítica do filme sobre o papel raso do político é válida, afinal vivemos uma das piores crises políticas institucionais e de representatividade da história. Mas apenas criminalizar o político, sem questionar a quais interesses esse político atende é muito raso. Buscar um culpado para o problema sem entender de fato o problema parece atender aos interesses de quem detém o status quo político. Além disso, apresentar um indivíduo como empresário, gestor eficiente, apolítico, livre de corrupção é de um cinismo sem tamanho. E ingênuo é aquele que credita nessa narrativa.

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Guto Leão
Guto Leão

Mestre em Sistemas e Computação, na área de Engenharia de Software, pelo Instituto Militar de Engenharia. Mas se orgulha mais de ter sido mestre de RPG.