LITERATURA

Lawrence F. Pereira: a importância da poesia oral na tradução de Shakespeare

Guto Moraes
Guto Moraes
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4 min readDec 7, 2023

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Produzido para a Fundação Joaquim Nabuco, em 11 de setembro de 2020.

Há um personagem louco, na tragédia teatral Rei Lear (1606), que remetia para o professor e tradutor literário Lawrence Flores Pereira ao cordelista paraibano Limeira, conhecido ‘poeta do absurdo’. A obra do dramaturgo inglês William Shakespeare foi a terceira traduzida pelo gaúcho para a Coleção Penguin, da Companhia das Letras. Otelo e Hamlet completam a tríade. Sobre a experiência, ele fala na live “Traduzindo as tragédias de Shakespeare”, da Feira Literária do Vale do Ipojuca (Flipojuca), na próxima quinta-feira (17), às 18h. O evento é promovido em parceria com a Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj) e será transmitido no canal da Instituição pernambucana no YouTube.

Para o diretor de Memória, Educação, Cultura e Arte (Dimeca), da Fundaj, Mario Helio, a tradução é um tema essencial de qualquer país maduro em sua cultura e educação. “Não há como desenvolver o conhecimento sem o exercício constante da tradução. O Brasil, neste quesito, ainda está muito aquém, embora tenha melhorado graças às iniciativas individuais e trabalhos organizados em núcleos universitários. Lawrence Flores Pereira é um tradutor dos mais ativos e premiados das novas gerações, com um trabalho reconhecido e premiado não apenas pelas versões que vem realizando de Shakespeare, mas até de clássicos gregos. É hoje um dos mais eruditos tradutores em língua portuguesa”, destaca o diretor.

Vencedor do Prêmio Jabuti 2016, na categoria Tradução, pelo trabalho feito em Hamlet, F. Pereira revela a importância da poesia oral do Nordeste no seu processo de tradução. “Os poetas possuem um gene que transcende as diferenças de origem. Claro, há diferenças em todos os poetas, mas a inspiração é familiar a todos. Como um compositor, cuja construção de uma música passa por melodias já conhecidas. Para nos aproximar do plurilinguismo shakespeariano, precisamos usar de todos os recursos que a nossa cultura oferece”, afirma, ao mencionar nomes da poesia popular ao repente, como Manoel Xudu, Otacílio Batista, Diniz Vitorino, Inácio da Catingueira e Canhotinho.

Um dos mais influentes dramaturgos do mundo, Shakespeare também foi ator. O que, para Lawrence, reflete no reconhecimento que a obra do Bardo teve desde o início. “Ele levava a oralidade e a fácil compreensão do público em consideração, por isso sua obra é multifacetada e polirrítmica. Vamos ter cenas de nobreza, trágicas, de redenção, poéticas, cômicas e até mesmo satíricas. Outras com teor totalmente popular da cultura européia medieval, como Câmara Cascudo já apontou na obra de Dante. No Século 20, [a cultura popular] desaparece ou diminui sua presença na Europa. No Brasil, por outro lado, permaneceu e ainda permanece.”

Postura mantida pelo tradutor, que vivenciou a poesia ainda na juventude, através das trovas improvisadas pelo avô sulista. Mais tarde, abriu mão do projeto sobre o poeta hermético João Cabral de Melo Neto para abraçar a poesia popular. “O corpus da poesia popular é o corpus mais sólido [do País], que devia estar entre os estudos de Literatura Brasileira, obviamente”, defende, ao explicar o processo de transfiguração ou alquimia em que acessa sua poesia particular para reapresentar Shakespeare aos antigos e novos leitores. “Estou sendo poeta como eles, mas poeta-tradutor. São ritmos que acabam nos penetrando e emergem.”

A influência dos estilos da poesia nas traduções do dramaturgo é o aspecto que distingue o resultado ofertado por F. Pereira e o contemporâneo José Francisco Botelho de outras traduções das obras clássicas. O que considera crucial para que o público acesse uma leitura recreativa e com ritmo, em detrimento de outra adiposa e distante da experiência essencial para se compreender a poética de Shakespeare. Nisto, insiste, está o sabor. Autor de títulos que mesmo nos dias atuais têm grande reverberação na literatura e na arte, como Romeu e Julieta, Shakespeare nasceu no século 16, há 456 anos. Considerado uma leitura essencial, poderia se manter pouco acessível — em tempo e linguagem — , não fosse o trabalho de Lawrence.

“Aprender das tragédias e comédias de Shakespeare e da experiência que é traduzi-las é assunto não apenas da alta cultura, mas também da cultura popular, como provou Ariano Suassuna com sua versão de Romeu e Julieta calcada quase palavra por palavra num poema popular de autor do Nordeste”, concorda o diretor da Dimeca. “Nas peças de Shakespeare temos o que há de mais universal. Sua obra parece inesgotável, de tal maneira que aparenta ser nosso contemporâneo e não que se desenvolveu no primeiro século da colonização do Brasil, quando o idioma de todo dia não era ainda o português, nem tínhamos ainda uma literatura que fosse de todo nossa”, conclui Mario.

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Guto Moraes
Guto Moraes

Repórter de Cotidiano da Folha de Pernambuco. CEO da Revista Dona Custódia. Colaborou com o Catraca Livre e Revista O Grito!.