Aula na Pediatria

“Eu quero ser Médico, e aqui eu aprendi um monte de coisas com os internos e os residentes!”

Andre Saijo
Health and Medicine

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"Oi, posso sentar aqui?", ele me perguntou no meu primeiro plantão noturno na Enfermaria da Pediatria, 11 horas da noite. Eu estava atrasado para preencher os prontuários e as fichas de internações, inexperiente pois era o segundo dia de Enfermaria ainda. Pensei que não teria problemas em deixá-lo sentar ao meu lado, porque provavelmente aquela criança ia querer assistir Galinha Pintadinha ou algo do tipo no computador.

Crianças doentes não são iguais a crianças saudáveis, por mais que a gente tente lembrá-las e fazer o máximo possível para elas se sentirem normais. Mas aquele garoto de 7 anos tinha algo de diferente, mesmo entre os outros pacientes daquela Enfermaria: ele sentou e ficou lendo as coisas que eu escrevia.

No início eu estava com pressa, porque queria dormir cedo, já que ia acordar antes das 6 para deixar tudo pronto para o dia seguinte. Mas diante daquela curiosidade infantil e "estranha", resolvi parar de escrever e perguntar: "Por que você tanto lê o que eu estou escrevendo? Minha letra já não é mais tão bonita quanto antes, então se você não entender alguma coisa, pode perguntar." Ele logo disse: "Eu não entendo tudo que vocês escrevem, mas já sei algumas coisas".

O garoto começou a contar como aprendeu o que era neutropenia, neutropenia febril e a conduta para essa situação. Contou que já estava internado há 2 semanas, que era de Rondônia e que estava passando férias aqui em São Paulo. Mostrou a cicatriz da biópsia que fizera alguns dias antes, e que não estava doendo. Contou que estava com medo, mas que gostava de estar ali.

Diante dessa afirmação, que realmente me surpreendeu, eu perguntei o porquê dele gostar de estar internado. Ele disse: "Eu quero ser Médico, e aqui eu aprendi um monte de coisas com os internos e os residentes!" (E sim, ele sabia perfeitamente bem o que eram internos e residentes).

Eu, que só tive Asma quando criança, não consigo imaginar como uma criança doente possa querer ser médico. Eu, naquela idade, assistia desenhos e brincava a tarde toda com meus amigos de infância. Bom, ele também devia fazer o mesmo. Passando muito tempo no hospital, a gente começa a esquecer que as crianças também têm uma vida além dessa internação.

"Esse eosinófilo parece um nariz de porco"

Falei para ele: "Já que você sabe o que é neutropenia, vou te mostrar como são os neutrófilos" e abri o Google Imagens para mostrar as células do sangue. Ele mal piscava diante do computador, e eu, finalmente, me senti realmente feliz por ter aprendido a diferenciar linfócitos de basófilos. No fim, tudo que a gente aprende tem uma utilidade…

Passamos um bom tempo conversando sobre sangue e doenças, de uma forma que nunca imaginei que conversaria com uma criança. Ele pediu para ver o exame de sangue dele, e eu mostrei. Mas ele em momento algum perguntou o que eu achava que seria a doença dele. No fundo ele já sabia.

Olhei para o relógio do computador e vi que era mais de meia-noite e mandei ele dormir, já que amanhã seria um dia cheio para ele. E para mim também, não na mesma proporção. Continuei, então, a escrever de onde eu tinha parado.

No dia seguinte, a tarde, recebemos uma ligação do Laboratório informando que o resultado da biópsia foi positivo para Linfoma de Hodgkin. Ele, enfim, teria alta e encaminhamento para o ITACI (Instituto de Tratamento do Câncer Infantil).

Na hora de se despedir, recebi o primeiro abraço nesse Estágio de Pediatria. A mãe dele dizendo: "E como é que se diz pra ele? Obrigado, não é?". Mas nem precisava dizer. Aquele abraço já disse tudo. E eu não pude deixar de perguntar: "E aí, você ainda vai ser médico, não vai?", e a resposta foi afirmativa, mas quem sabe ele mude de ideia mais pra frente!

As vezes a gente recebia umas notícias de que ele tinha começado a quimioterapia e estava bem. Não sei mais sobre ele, infelizmente. Mas naquela noite ele me ensinou mais do que eu ensinei a ele sobre monócitos e eosinófilos. E essa é a parte chata de ser interno. Encontramos esses pacientes que mexem com a gente, mas cedo ou tarde não vamos mais vê-los. Talvez seja parte do aprendizado. Assim espero.

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Andre Saijo
Health and Medicine

Brazilian, physician, underdog (YC), psycho-ish, nerd @decoyc