Aneurisma de Aorta e Gratidão

Andre Saijo
Health and Medicine
3 min readJun 23, 2015

Hoje, durante um plantão infernal no PS de Cirurgia do HC, quase no final dele às 18:30, decido pegar uma última ficha antes de ir embora. Chamo o paciente pelo nome e vejo um senhor vindo, aparentemente saudável, com um rosto familiar. Na hora me veio a dúvida: “será que conheço?”.

- “Olá, boa noite! Já nos encontramos antes, não?”

- “Sim, três meses atrás quando eu achei que fosse morrer”

Costumamos atender tantas pessoas nos pronto-socorros que é difícil lembrar de todos. E eu, particularmente, tenho uma memória visual muito ruim e dificilmente me lembro da fisionomia dos pacientes um dia depois de vê-los.

Mas depois que ele falou aquilo, eu lembrei!

A situação em que me encontrei com ele pela primeira vez tinha sido bem diferente. Estava no HU, durante meu estágio no PS de Cirurgia de lá. Era de madrugada, umas 4h da manhã. E o paciente também estava bem diferente, suando frio, branco como uma folha de papel e com a pressão arterial muito baixa. Lembrei até que ele dizia:

Essas pedras nos rins estão me matando!

Ele recebera esse diagnóstico no dia anterior em outro pronto-socorro, onde não havia tomógrafos e o aparelho de ultrassonografia estava quebrado.

No momento achei estranho uma dor de litíase renal causar tanto estrago como aquele, e, lembrando do dogma #1 da Medicina ("Se te comove, MOVE."), levei-o para a Sala de Emergência, pedi para a Técnica de Enfermagem me ajudar a monitorizá-lo, dar oxigênio, pegar acesso venoso e colher sangue para pedir exames. Então chamei o residente para vê-lo, e pedi para fazer soro para repor volume e realizar uma tomografia do abdome quando ficasse mais estável.

Infelizmente meu plantão acabou e eu não pude continuar a acompanhá-lo. Despedi-me dele e da sua esposa dizendo que tudo ia ficar bem. E então fui embora imaginando se minha hipótese diagnóstica estava realmente correta.

No dia seguinte, descobri que eu tinha acertado. Ele tinha rotura de aneurisma de aorta abdominal, o que é bastante ruim e grave. Ele fora encaminhado para o HC e realizou cirurgia vascular de emergência.

Alguns não vão entender a tomografia, mas imaginem que a seta aponta para algo bem ruim.

E a partir de então, não soube mais dele.

Eis que, três meses e alguns muitos plantões depois, reencontro-o em outro hospital. Coincidências da vida… E ele ainda se lembrava de mim e eu dele! Ele estava no PS hoje por outro motivo, mas fiquei muito feliz em reencontrá-lo bem. Disse que parou de fumar e estava fazendo caminhadas com o filho no final do dia. Passou a enxergar a vida de outra maneira e estava vivendo melhor.

Depois de corrigi-lo pela décima vez, ao me chamar de doutor, dizendo que eu ainda não o sou, ele fala:

"Doutor, me desculpa, mas vou te chamar de doutor sim. Devo tudo isso a você e ao pessoal daqui do HC e do Hospital da USP. Eu achei que eu não fosse passar daquela noite, e hoje tive a sorte de te encontrar pra te agradecer. Muito obrigado por salvar minha vida."

Até então nunca tinha sentido o peso dessas palavras. Salvar uma vida… Naquela noite, e ainda hoje, não consigo ver que salvei uma vida. Prefiro pensar que foi o tomógrafo que o salvou, aquele soro ou os cirurgiões que consertaram a aorta rompida. Mas no fundo sei que temos essas responsabilidades (gigantescas!) que, na correria do plantão, tentamos disfarçar.

Não soube o que responder na hora. Pensei na hora: "obrigado você, por me ensinar tanto daquilo que mais amo!". A Medicina as vezes tem dessas coisas.

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Andre Saijo
Health and Medicine

Brazilian, physician, underdog (YC), psycho-ish, nerd @decoyc