A composição amada pelo público, mas odiada por seu compositor: Um olhar à Tchaikovsky

Calisto Pereira
Hello Band
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8 min readAug 18, 2021
O compositor Pyotr Ilyich Tchaikovsky (1840–1893)

Histórias e relatos de artistas que nutriram um eminente desafeto por suas próprias músicas, sobretudo, aquelas que tornaram-se hits, levando-os ao estrelato pelo reconhecimento, tampouco são raras no mundo da música em inúmeras ocasiões de múltiplos gêneros musicais e épocas. Ante isto, pode-se citar casos como “Smells Like Teen Spirit”, canção odiada por Kurt Cobain (Nirvana), “Believe”, detestada por Cher por desgostar da quantidade demasiada de autotune sobreposta à sua voz, “Strangers in the Night”, criticada sem brandura por Frank Sinatra, dentre outros copiosos exemplos.
E, sendo assim, por que seria diferente em meados do fim do século XIX, especificamente, no ano de 1882?

Como a história em si, em seus tantos ângulos, tampouco trata-se de contínuas asseverações concretas, levando em consideração aspectos como a impossibilidade de resgate de todas as fontes historiográficas materiais e não-materiais já produzidas pelo ser humano, é extremamente arriscado asseverar de antemão que Tchaikovsky fora o primeiro artista a antipatizar (como bem o fazia) sua própria obra que o assegurou sucesso. Conquanto, que possui-se ciência até o momento, sim.

Quem sabe, graças à imprevisibilidade do processo sempre constante de descobertas de fontes historiográficas, poderemos, posteriormente, nos deparar com um musicista do Império Romano Ocidental iterando em suas memórias escritas: “ODI MEOS MVSICA.

Mas, até lá, permaneçamos com Tchaikovsky.

Quem foi Tchaikovsky?

Pyotr Ilyich Tchaikovsky, compositor de naturalidade russa, nasceu no dia 7 de maio de 1840 em Votkinsk, zona de Vyatka, Rússia. Pyotr Ilyich Tchaikovsky foi o executor de alguns dos tópicos mais ilustres de toda a música clássica. Este tampouco fundou escola alguma, não abalroou novos caminhos ou métodos composicionais e buscou poucas inovações em suas obras. No entanto, o poder e o alcance comunicativo de sua música o içam ao status clássico com notoriedade, ainda que não ache-se uma “amálgama de inovação e sofisticação ousada”, como bem criticava ferrenhamente Wagner. Seja pela melodia cativante de Tchaikovsky em seu balé O Quebra-Nozes ou em sua funesta última sinfonia, que, decerto, grandes audiências encantavam-se (e, até o presente, encantam-se) por suas composições.

Tchaikovsky nasceu em uma família de cinco irmãos e uma irmã. Começara a ter aulas de piano aos quatro anos e mostrou, por conseguinte, uma aptidão ilustre, excedendo ocasionalmente as competências de seu próprio mentor. Mesmo com as complicações psicológicas que sobressaíram-se no ínterim após os nove anos de idade, Tchaikovsky perseverara devoto à música, salientando suas contínuas habilidades crescentes. No ano sequente, foi enviado à São Petersburgo para que pudesse dar ênfase em seus estudos no tocante à seu posterior desenvolvimento profissional fora do âmbito musical, havendo, outrossim, no ano de 1854, a perda de sua mãe, sendo decerto um pesaroso acontecimento marcante para o jovem Tchaikovsky. Em 1859, assumiu um cargo no Ministério da Justiça, mas ambicionava pela carreira musical, assistindo concertos e óperas em todas as oportunidades, permanecendo mais convicto de seu almejo. Este enfim começara a estudar academicamente a música no ano de 1862, matriculando-se no Conservatório de São Petersburgo.

Em 1866, o musicista mudou-se para Moscou, aceitando o cargo de professor de harmonia musical em um recém-inaugurado conservatório, e logo ulteriormente lançou sua Primeira Sinfonia, experienciando, no entanto, um colapso nervoso durante sua composição. Sua ópera Voyevoda fora lançada em 1868. Outras obras de Tchaikovsky também estavam paulatinamente sendo finalizadas nessa época, englobando o Primeiro Quarteto de Cordas (1871), a Segunda Sinfonia (1873) e o insigne balé Lago dos Cisnes (1875).

Em 1876, Tchaikovsky viajou para Paris com seu irmão, Modest, e ademais visitou Bayreuth, onde conheceu o também musicista Liszt, em que, no entanto, foi menosprezado por Wagner no concernente à sua dita “incapacidade de inovação musical”. Em 1877, Tchaikovsky, afora da crítica dantes recebida por Wagner, fora capaz de destacar-se como compositor no cenário musical da época e onde este vivia. Este foi o ano da apresentação de estreia oficial de Lago dos Cisnes e a época em que este começou a preparar na Quarta Sinfonia. Não obstante, fora também uma fase de angústia: em julho, Tchaikovsky, apesar de sua homossexualidade, enviesando ceder à pressões externas diretas e indiretas, casou-se com Antonina Ivanovna Milyukova, uma fervorosa admiradora encantada por este, cuja união calamitosa perdurou por unicamente alguns meses, do ponto de vista recíproco-sentimental (devido à a protocolos rígidos sobre o divórcio na Rússia Imperial, os dois continuaram legalmente casados até a morte de Tchaikovsky, mas, decerto, sem mútuo sentimento). O compositor tentou suicídio entrementes.

Afora das incontáveis turbulências na vida do compositor, ainda assim, este subsistira ativo no mundo da música. Viagens ao exterior advieram na década de 1880, junto com uma enxurrada de composições incluindo a Serenata para Cordas em Dó Maior (1881) e, de estrondoso sucesso apesar do desgosto do compositor, Abertura Solene Para o Ano de 1812 (1882).

Ao longo dos últimos anos de Tchaikovsky, este fora incessantemente perseguido por ansiedade e depressão. Tchaikovsky escreveu sua Sexta Sinfonia, “A Patética”, em 1893, e foi estreada em outubro daquele mesmo ano. O musicista faleceu dez dias depois de cólera, ou, como alguns teóricos continuamente reiteram, ao beber veneno de consenso com uma sentença de morte que lhe foi conferida por seus colegas da escola que frequentara, que receavam que a imagem da instituição fosse manchada pelos rumorejos de homossexualidade envolvendo Tchaikovsky.

Estátua em homenagem ao compositor Tchaikovsky, na cidade de Moscou, Rússia.

A obra que lhe rendeu notoriedade (mas desgosto): Sobre o que trata-se, afinal?

A Abertura Solene Para o Ano de 1812, composta por Tchaikovsky, efetuada em Moscou em 1882, encomendada pelo diretor dos Concertos da Sociedade Imperial Russa, Nicolay Rubinstein, retrata em sua temática primeva expressa na musicalidade e enredo, a invasão francesa das tropas napoleônicas às terras do Império Russo no ano de 1812 e a subsequente gloriosa derrota e devastação desta pela população russa, arreliando uma amálgama de memórias históricas e olhares nacionalistas, pautando-se destarte em uma dualidade, entre a inicial vitória francesa e a decorrente vingança russa. A França é musicalmente representada inicialmente pelo tema de La Marseillaise, e, a Rússia, a posteriori, pelo hino Deus Salve o Czar.

Apesar do precedente fascínio do público russo com o lançamento da composição, o pensamento de Tchaikovsky tampouco caminhava na mesma direção que a dos apreciadores.

O maior crítico: Por que a rixa de Tchaikovsky com a composição?

A avaliação infame que viera à tona adiante de que a composição era “demasiadamente baderneira, ruidosa e completamente sem mérito artístico algum, ou amor para com a música”, foi escrita precisamente por Tchaikovsky. A popularidade da abertura foi uma fonte de profunda frustração para este, que levava a composição musical à sério ligadamente de um olhar excepcionalmente sensível, cuja criatividade expressa outrora fora capaz de transformar a arte de compor música ao balé em uma notória maestria.

O sucesso bombástico da Abertura Solene Para o Ano de 1812 fizera Tchaikovsky constatar, em seus princípios, que o mundo se preocupava bem mais com o espetáculo hiperbólico, frenético e espalhafatoso do que com a sentimental e complexa expressão pessoal de suas outras sinfonias que desenvolvera outrora

Ao passo em que sua composição tornava-se cada vez mais popular, mais Tchaikovsky se convencia de que o mundo precipuamente entendia mal sua arte “verdadeira, com sua essência que realmente buscava apresentar.

Parafraseando em uma frase contemporânea, a Abertura de 1812 de Tchaikovsky fora vista por este com desencanto como “uma grande farofa pop”.

O processo de desenvolvimento da obra e suas características

O pedido de Rubinstein, que encomendara a composição à Tchaikovsky, em um cenário hipotético (mas, dadas as circunstâncias, não raro que quiçá próximo à ser verídico), pode ter sucedido-se da seguinte forma:

Tchaikovsky, faça uma composição comemorativa. Vá, e a encha com temas nacionais conhecidos. Faça um trabalho preciso e útil para marcar a abertura daquela nova catedral. E, claro, o 25º aniversário da coroação de Alexandre II. Além do mais, de forma alguma se esqueça da Exposição de Arte e Industrialismo da Rússia. Eles vão querer algo também.

Tchaikovsky, destarte, lançou a Abertura de 1812 em seis semanas posteriormente, seguindo a receita musical solicitada projetada para conquistar e cativar o coração russo (e, com êxito, assim o fez).

Após o início com um brando hino cristão ortodoxo adaptado à composição, irrompe-se uma dança folclórica russa, exibindo em notas o orgulho nacional, logo após, aluído pela aparição de La Marseillaise, caracterizada com um certo escarnecimento. Posteriormente, a mescla melodiosa de Tchaikovsky surge à medida que seus temas são combinados em contraponto, assinalando a gênese do conflito. Com a batalha ganhando força, o hino Deus Salve o Czar emerge na melodia, manobrando notas contra-melódicas perante La Marsellaise, em uma evidente metáfora de duas nações guerreando na música. A melodia dos instrumentos de corda decrescendo simboliza a retirada russa com o triunfo, destarte, prorrompendo os abruptos e altos tiros de canhão, juntamente de sinos de igreja e o destaque ao retorno do hino russo.

Aparentemente, com tamanha complexidade e habilidade de composição da obra, esperava-se comumente que Tchaikovsky sentiria orgulho perante sua obra-prima definitiva e sua execução, mas sua fé na Abertura de 1812 rapidamente quebrou-se em mil pedaços. Seu anseio de vê-la apresentada na praça da catedral, com uma banda de música marchando no palco para dar ênfase ao clímax em conjunto do culminar dos sinos e dos canhões provou ser irrealizável.

Não havia-se contado com um empecilho técnico: que explodir tiros de canhão no ritmo exato da música era quase (se não) impossível. O delay de tempo entre o lançamento e o som do tiro tornava impossível a manutenção do ritmo da composição. Além disso, em 1881, o outrora imperador da Rússia, Alexandre II, foi executado, e a música comemorativa tornou-se no mínimo inapropriada. A obra tivera sua primeira audiência em um ambiente fechado e privado na dita Exposição Artística (adiada), dois anos depois, sem tiros de canhão ou sinos de catedral, mas substituindo isto com maior ênfase instrumental (que, em inúmeras variações da obra, fora acentuada cada vez mais), criticada por Tchaikovsky. Afinal, este pretendia que sua composição soasse “respeitosa” e “triunfal” em memória, e não uma bagunça espalhafatosa de instrumentos como este observou outrem performar.

Pretensão inicial de Tchaikovsky em sua apresentação de lançamento da composição, com a presença dos canhões.

Reflexão: Tchaikovsky estava correto em ser tão duro com as críticas?

Resposta curta [na opinião do autor que escreve-lhes]: Não.

Resposta longa: O caso do desgosto de Tchaikovsky com a Abertura de 1812 muito amada por um público extremamente vasto mas detestada por este nas execuções que surgiam por “não adequarem-se às expectativas primevas como seria no lançamento”, adentra em um caso bem familiar no mundo da música de restrições de compositores perante execuções de sua autoria, ou, melhor dizendo, os famigerados covers. Tchaikovsky não percebeu que é impossível simplesmente a existência de uma cópia perfeita de uma idealização, juntamente do ato de “reivindicar eternamente a composição para que ninguém mais a execute” ou impor uma visão limitada sobre esta, uma vez que ela deixa o imaginário do compositor, é escrita, e, assim, lançada, tornando-se, assim, um domínio público (salvo casos de copyright, mas que não aplicavam-se à época).

A fama da obra na contemporaneidade

E, para evidenciar ainda mais a contradição da visão de Tchaikovsky para com sua composição, a imensa fama deste estende-se até o contexto contemporâneo, seja no quesito temporal, quanto cultural, como, por exemplo, na utilização da obra desde jingles de comerciais de televisão norte-americanos, até em episódios de seriados infantis como em um episódio dos Muppets, quanto, inclusive, em filmes aclamados pela crítica, como em V de Vingança (2005).

Trecho do filme V de Vingança (2005) em que a composição é utilizada.

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Calisto Pereira
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LGBT • 21 Outonos • Historiador • Aficcionado por Excentricidades Artísticas • Paulistano-Nortista da Gema