Emicida e a mensagem de AmarElo 5 anos depois

Samuel Fernandes
Hello Band
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6 min readJul 3, 2024

“Latente, potente, preto, poesia. Um ombro na noite quieta, um colo para começar o dia.”

O discurso na voz de Pastor Henrique Vieira, que encerra Principia, faixa de abertura do álbum AmarElo é a definição perfeita para este que é o último trabalho de estúdio lançado por Emicida, em 2019, que completa seus cinco anos de vida agora em 2024. Um trabalho que alcançou diferentes pontos do planeta, se tornou mais um clássico e se encerra de forma apoteótica com a turnê A Gira Final.

Conheça o impacto do álbum, as mensagens apresentadas nele e seus desdobramentos para outras mídias.

O álbum

Começando pelo princípio, o “elo” destacado no título de AmarElo tem inspiração direta em um poema de Paulo Leminski: “Amar é um elo / Entre o azul / E o amarelo”.

Mas isso se eleva a sentidos ainda maiores no álbum, ao levantar a ideia de que estamos todos ligados por um elo universal, somos todos um só. Uma ideia presente na filosofia africana Ubuntu, que significa: “Sou o que sou pelo que nós somos”. Ou nas palavras de Emicida no refrão de Principia: “Tudo que nós têm é nós”. Inclusive, esta que é a faixa de abertura do álbum carrega consigo toda a ideia central, tendo seu título inspirado no livro Principia Mathematica, de Isaac Newton:

“O livro fala que quando um corpo entra em contato com outro, ele altera o destino do corpo menor através do movimento. Por mais que esse corpo menor tenha seu destino alterado de maneira mais brusca, o corpo maior também tem seu destino alterado. Então, a partir do momento que a gente se encontra, tudo muda”.

Emicida para o BuzzFeed

Com esse mantra na cabeça, começamos a trilhar o álbum. Seguindo para uma reflexão sobre a vida em A Ordem Natural das Coisas, que narra um pouco do cotidiano em São Paulo, a maior cidade da América Latina, mas que também vale para qualquer pessoa que corre atrás de seus objetivos desde o momento que acorda. Da vida corrida de muitas Donas Maria, que mal começa o dia e “já se foi, só depois é que o sol nasce”, mas que carrega no peito toda a esperança no futuro, uma ideia que “o som das crianças indo para escola convence”, porque “o feijão germina no algodão, a vida sempre vence”.

Compreendendo que é de momentos sutis que a vida é feita (ou das “pequenas alegrias da vida”), o álbum estabelece seu mantra de positividade. Algo que se mantém nas faixas Quem Tem um Amigo (Tem Tudo) e Cananéia, Iguape e Ilha Comprida, logo em seguida.

Mas não se deixe levar apenas pelo ritmo leve e contagiante das músicas e perigar passar ileso pela mensagem de músicas como Ismália ou até mesmo a 9vinha, que, de forma sútil, narra a romantização da violência na sociedade e como ela atrai tantos jovens. Uma história que pode levar a tragédias que são muito bem-vindas nos plantões de jornais sensacionalistas (“Oh, meu bem, a gente ainda vai sair nos jornais”), que se apoiam nestas tragédias para inflamar o ódio na população.

“Todo mundo que ouve ela de forma pouco cuidadosa, acha que é um relacionamento de dois adolescentes que estão se descobrindo, se amando, querendo ficar famosos, perder a virgindade juntos. Mas, na verdade, trata de um moleque de 15, 16 anos falando da relação dele com uma arma de fogo. […] Saíram várias resenhas e vários manos jornalistas não pegaram: ‘Ah, porque ele fala de um amor junto com a Drik Barbosa, os dois falando de sexo sem pudor’ e eu só aqui (risos)”.

Emicida sobre “9vinha” para o Buzzfeed

Sendo bem sincero, cada faixa desse álbum e seus significados merece um artigo só seu, mas o tempo é curto e existem outras formas de vivê-lo.

Outras formas de ouvir

A história saiu dos fones de ouvidos para se estender também para as telas de milhares de casas, com o documentário Amarelo — É Tudo Pra Ontem, disponível na Netflix. Nele, a história brasileira é resgatada para contar, por meio de memórias culturais e próprias de Emicida, como a luta negra no Brasil começou há muito tempo lá atrás e como isso tudo é um movimento coletivo, que se passa como uma herança, de gerações para gerações. Formando, assim, a constante luta pela liberdade.

Outro desdobramento do álbum é o podcast AmarElo Prisma, disponível em plataformas de streaming de áudio e também no YouTube, que convida o ouvinte a uma jornada de autoconhecimento e transformação pessoal (e coletiva) através de quatro movimentos que se interligam como uma sinfonia, sendo eles: “Paz/Corpo”, “Clareza/Mente”, “Compaixão/Alma” e “Coragem/Coração”. Você pode ouvir o primeiro dos quatro episódios abaixo:

A Gira Final

Giras são os principais rituais da Umbanda. Inicialmente, se tratavam do contato com os orixás, mas hoje se tornaram mais pluralizadas e abrangem qualquer ritual em si. Como uma roda, onde cada componente cria uma corrente de energia que conecta todos espiritualmente, por meio de cantos, danças e rezas para gerar um momento de conexão. Assim como esta turnê.

Após cinco anos e 120 shows por nove países e 55 cidades, cada pessoa que teve o privilégio de poder presenciar, teve o poder de sentir a intensidade da mensagem deste álbum.

Com vozes e instrumentos de Dona Onete, Drik Barbosa, Emicida, Fabiana Cozza, Fernanda Montenegro, Ibeyi, Jé Santiago, Majur, Marcos Valle, Mc Tha, Pablo Vittar, Papillon, Pr. Henrique Vieira, Pastoras do Rosário, Thiago Ventura, Tokyo Ska Paradise e Zeca Pagodinho. Além de produções de Damien Seth, DJ Duhh, Felipe Vassão, Jamelão, Laboratório Fantasma, Mario Caldato e Nave. O trabalho de AmarElo chega a seu capítulo final, que é também um estado de espírito.

O amor criou o AmarElo

Por fim, o que melhor pode resumir a mensagem de AmarElo é sua importância para todos nós como povo. O amor é o tema principal do álbum, assim como de nossas vidas. Pois, ele é a revolução que nos faz humanos, é a mais profunda forma de fazer arte. É o que, nas palavras de Paulo Leminski, se faz presente e “se transforma numa matéria-prima que a vida se encarrega de transformar em rima”.

Por isso, eu fecho nas próprias palavras de Emicida, em É Tudo Pra Ontem momentos antes do show de estreia do disco:

“Daqui a 50 anos, essa vai ser a noite que transformou a vida de muita gente. Essa é nossa forma de dizer pra todas as pessoas que têm uma origem igual a nossa que esse lugar é deles, que a gente precisa, sim, ocupar esse tipo de espaço, esse tipo de ambiente. E, porque não, todos os ambientes que lhes foram negados ao longo da história desse país. E os juízes, os médicos, os advogados, os próximos presidentes, estão sentados ali. A gente vai devolver para eles o direito de sonhar, firmeza? Muito obrigado. AmarElo é isso aí.”

Sim, AmarElo é isso aí.

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