Milagre dos Peixes: a voz de Milton Nascimento contra a Ditadura Militar
Só um gênio é capaz de criar um disco transgressor e transcendental.
“Eu tenho estes peixes e dou de coração.”
O trecho acima é da faixa “Milagre dos Peixes”. Com letra de Fernando Brant, esta foi uma das raras sobreviventes à feroz caneta do Departamento de Censura e Diversões Públicas no ano de 1973, durante o Regime Militar. Com a mesma violência do pincel atômico da censora, a Ditadura instaurava anos antes o Ato Institucional Nº5 (1968) que ao longo de uma década foi uma ferramenta de intimidação política e social responsável pelo desaparecimento, prisão, tortura e morte de milhares de brasileiros, além de reforçar o aparato do Estado na censura dos meios de comunicação e obras audiovisuais, com artistas sendo vigiados, presos e exilados. Neste cenário de terror Milton Nascimento cria uma importante obra prima da Música Popular Brasileira.
Milagre dos Peixes foi lançado em 1973. Seu nome faz alusão direta à política do “Milagre Econômico”, que baseado na supressão de direitos, da liberdade de expressão e na submissão aos interesses de mercado dos Estados Unidos, garantiria ao Brasil o pleno desenvolvimento industrial e econômico, reforçado por slogans da Ditadura como “Este é um país que vai pra frente”.
O encarte possui produção gráfica assinada por Noguchi e é composto por um pôster com 3 dobras, um formato inédito para os discos da época. Na capa temos uma foto em tons sóbrios de uma mão que segura um bebê, internamente uma antiga foto de Milton Nascimento quando criança, além de 5 encartes coloridos com as fichas técnicas de cada música. O projeto visual faz um culto à prosperidade, à vida e sua renovação, ao nascimento e à esperança de novos tempos (estes mais coloridos), em um formato transgressor que aliado ao nome do disco contrapõem o sistema repressor dos anos 1970 no Brasil.
O álbum, que possui um total de 11 faixas (8 músicas no disco e um compacto com mais 3), teve boa parte de suas canções censuradas. Em resposta, Milton Nascimento usa sua voz como mais um instrumento, substitui as letras por uma performance vocal potente e emocionante, com interpretações nas quais os trechos vetados são trocados por vocalises, falsetes e ambiências vocais. Ainda assim podemos ver os créditos de “letra” nas fichas técnicas do encarte em uma clara denúncia contra sua censura.
Um dos melhores exemplos dessa estética está na música “Hoje é Dia De El Rey”. A faixa representa um diálogo entre pai e filho e sob o pano do conflito de gerações Milton Nascimento interpreta, em um épico vocal, uma acalorada discussão entre o regime/ seus apoiadores e seus opositores. Ao ser submetida aos censores as únicas frases da letra escrita por Marcio Borges liberadas são: “Filho meu / Meu Filho”, que podemos escutar isoladamente durante os quase 7 minutos da gravação, acusada de “iniciativa à subversão e à desordem civil”.
O disco ainda conta com “Os Escravos de Jó”, cujo um dos trechos censurados fazia referência à “Vaca Amarela”, brincadeira infantil em que é proibido falar. Parte da canção é interpretada por Clementina de Jesus e mais tarde seria regravada por Elis Regina. A faixa título contrasta a rigidez do regime com o belo da natureza, usando como alegoria a multiplicação dos peixes. Em “Carlos, Lúcia, Chico e Tiago” temos uma faixa instrumental que reforça o estilo musical progressivo e jazzista, enquanto em “A Chamada” o músico oferece uma experiência imersiva com os efeitos sonoros que remetem aos elementos da natureza. Ainda nela podemos escutar apenas as frases “Eu tô cansado! Me Salva!”, interpretadas com a angústia que o momento histórico demandava. “Pablo”, presente no compacto, é uma linda homenagem do cantor ao seu filho e “A Última Sessão de Música” é uma das mais introspectivas faixas instrumentais, interpretada por Bituca no piano.
O resultado é uma obra em que a estética musical e gráfica desafiam os padrões de outras gravações do período e reforça a musicalidade que acompanharia Milton Nascimento nos álbuns seguintes, especialmente em Minas e Geraes (1975 e 1976, respectivamente) que também contam com a produção gráfica de Noguchi. Em 1974 Bituca se juntaria ao grupo Som Imaginário em uma performance no Teatro Municipal de São Paulo, que deu origem ao disco Milagre dos Peixes Gravado Ao Vivo.
Este é um álbum essencialmente político, em sua produção gráfica, em sua ficha técnica com créditos aos compositores que tiveram suas canções mutiladas e, principalmente, em sua estética sonora. Uma denúncia contra a censura, um grito do fundo da alma de Milton Nascimento e de milhões de vozes suprimidas por um silêncio imposto pela estupidez.
Você pode escutar “Milagre dos Peixes” no Spotify ou no YouTube .