O rock na cultura negra

Mariana Santos
Hello Band
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10 min readAug 26, 2021

Recentemente, uma discussão sobre a verdadeira origem do rock explodiu nas redes sociais carregando diversas opiniões, dúvidas e até mesmo algumas novidades sobre seu surgimento. Há quem afirme que o precursor do estilo seja Elvis Presley, com a profundidade sensual de seu timbre vocal e gingados em conjunto aos acordes afiados de guitarra; no entanto, com as contestações firmes e o tópico em alta, tal afirmação passou a ser debatida.

A princípio, é impossível dizer com precisão quando e como surgiu o gênero rock, uma vez que sua nata é composta a partir da junção de diversos outros estilos —como o R&B, o jazz, o blues e o country –, porém, é fato que tais gêneros são originados da cultura negra. A fusão dos três primeiros estilos resultou no início do rock, que, posteriormente, ao entrar em contato com o country (majoritariamente branco), deu berço ao rock popular.

Assim como todas as coisas que conhecemos, o rock percorreu um longo caminho até alcançar a forma como o conhecemos hoje, e para deixar tudo o mais claro possível, comecemos sua história por onde deveria ter o maior foco: a importância negra.

O início nos anos 50

No início de sua aparição, o rock não era considerado uma música decente por grande parte das pessoas da época. O gênero sofreu diversas tentativas de erradicação, com alegações vindas de grande parte de famílias brancas que diziam que o rock era fruto de pessoas delinquentes. Contudo, essa visão muda quando se prova que foi um dos responsáveis por quebrar várias barreiras raciais.

Foi um longo caminho até que esse ponto fosse alcançado, mas, uma vez que chegou, as principais vozes a darem brilho a este som foram as que ressoam até hoje.

Comecemos com a mais importante! Você provavelmente não deve ter ouvido o nome Sister Rosetta Tharpe. A artista estadunidense foi uma exímia cantora, compositora e guitarrista extremamente importante para a música em um geral, responsável por ser uma das principais pioneiras da história do rock.

Sister Rosetta Tharpe (Imagem: Reprodução)

Acompanhada de sua guitarra elétrica, Tharpe iniciou sua carreira com gravações de músicas gospel, adicionando ao gênero os acordes de guitarra no estilo soul e R&B, desenvolvendo o que ficou conhecido, mais tarde, como blues elétrico. Seu modo de tocar teve grande influência no blues britânico, este que foi responsável pelo lançamento de bandas como Led Zeppelin e The Rolling Stones.

Sister Rosetta tinha tudo o que uma grande artista precisa para deixar sua marca: talento, uma poderosa presença de palco, e o que viria também se tornar uma de suas maiores características: a capacidade de unir letras de cunho espiritual com o secular.

Apesar das grandes limitações que sua religião impunha, ela ousou a ultrapassar os limites do ‘‘certo’’, compondo inúmeras canções que serviram como inspiração para artistas posteriores, compartilhando com o mundo o grito sincero de sua alma.

Mesmo com os atritos com a igreja, ela nunca deixou o gospel por completo. Ela permitiu-se, também, experimentar o outro lado da arte pop/rock musical, esta sendo a razão principal de algumas controvérsias.

Tharpe conquistou o honorífico ‘‘madrinha do rock’’, que não é algo que esteja sob o conhecimento das pessoas que consomem o estilo musical. O ilustre cantor Little Richard tem Rosetta como sua principal inspiração, assim como cantores como Elvis e Johnny Cash.

Sister Rosetta Tharpe possui não apenas um papel fundamental na história do rock, como, também, uma incrível história de vida em paralelo a sua carreira. O documentário The Godmother of Rock’n’Roll está disponível no Youtube, com legenda em português, e é uma ótima recomendação para conhecer ainda mais sobre a artista e sua contribuição na música.

Os anos seguintes

Como mencionado, a formação do rock se deu pela junção de diversos outros ritmos negros. Nesse sentido, podemos dizer que um dos gêneros mais importantes é o blues. Regado de uma certa melancolia devido às dores de uma vida difícil, esse gênero era frequentemente cantado pela população negra que vivia nas áreas rurais dos Estados Unidos durante a Grande Depressão (1920).

Anos mais tarde, em um país que já declarava o fim de sua crise, o estilo foi mesclado com os outros e surgiu o ‘‘rock blues’’, dando espaço para a eclosão de artistas como Willie Dixon, Bo Diddley, Chuck Berry e, claro, Little Richard.

Willie Dixon, Little Richard, Bo Diddley e Chuck Berry (Imagem: Reprodução/Universal Pictures)

O impacto de Rosetta refletiu nesses músicos, que seguiram anos a fio pincelando com mais força a tonalidade do estilo musical com sua própria singularidade.

Bo Diddley, por si só, também é considerado um dos nortes do rock durante os anos 50. Seu nome artístico e estilo musical possuem origens fortes: durante o período de escravidão nas Américas, os cativos usavam seus próprios corpos para produzir sons de batidas, uma vez que não podiam usar seus tambores. Algumas crianças reproduziam o som da guitarra através de uma corda chamada ‘‘Diddley Bows’’.

O cantor tinha como marca registrada um jeito diferente de tocar sua guitarra, com batidas eloquentes que remetiam aos gingados da rumba, seguindo o ritmo de tambores africanos.

Little Richard é um ícone por motivos certos. Não apenas foi um homem negro adepto ao rock n’ roll, como, também, entoava em suas canções temas importantes com os quais se identificava. Entre eles, a sua homossexualidade.

Veja bem, em um país tão conservador quanto os Estados Unidos, ter um homem negro cantando abertamente sobre ser gay sob acordes afiados de guitarra, sustentando apresentações chocantes para a população na época, era mais do que o suficiente para um linchamento. Richard, entretanto, assegurou sua verdadeira persona, driblou o tabu e deu ao mundo o radicalismo necessário para que pudéssemos, eventualmente, agir como ele — destemido.

Little Richard possui hits consumados que perduram até hoje dentro do cenário musical, e muito provavelmente você já deve ter ouvido um deles. Tutti Frutti, de 1955, foi um de seus primeiros sons a ser considerado um hit.

Após o surgimento destes artistas, o rock toma um rumo diferente e começa a caminhar em direção a massificação de como o vemos hoje em dia. Influenciados por esses cantores, bandas como The Beatles, The Rolling Stones, The Who, Led Zeppelin, Pink Floyd e etc, emergem neste cenário, conduzindo sua própria marca sob as que foram deixadas em si.

Devido a popularização destes grupos, a assinatura de artistas negros acabou enevoada, fazendo com que a jornada negra dentro deste gênero tivesse sido “breve”. O que muitos desconhecem é que, em paralelo a essas bandas, grupos predominantemente negros também faziam seu nome na indústria.

Os anos dourados do rock

Para fãs assíduos que ainda vivem reclusos no último século, a verdadeira era de ouro do rock foi entre os anos 60 e 90. Com algumas ressalvas a grupos atuais (Coldplay, The Killers, Foo Fighters, etc), muitos ainda estão presos ao rock clássico que dominava as paradas musicais e atuava como trilha sonora de momentos inesquecíveis.

Durante essa era clássica, o nicho de rockeiros negros também certificou-se de fazer sua parte na música.

The Jimi Hendrix Experience

No fim de 1966, surgiu no cenário do rock psicodélico a banda The Jimi Hendrix Experience. Apenas pelo nome, já é possível saber que é o ilustre guitarrista Jimi Hendrix quem lidera a banda.

O grupo The Jimi Hendrix Experience (Imagem: Reprodução)

A forma de Hendrix tocar guitarra foi um de seus principais destaques como artista. Ele buscava sempre embelezar os acordes de sua Strat, também inovando durante as apresentações ao vivo quando chegava perto de um alto-falante com o intuito de produzir um efeito feedback.

Ele foi fortemente influenciado por artistas de blues, e, junto com a breve duração de seu grupo, gerou um gigante impacto cultural e instrumental. O primeiro disco do trio, Are You Experienced, foi um dos grandes sucessos da época, sido considerado pela Rolling Stone o décimo quarto (de uma lista com 500 álbuns) o melhor álbum de todos os tempos.

Bad Brains

Nos anos 70, a Bad Brains surgiu sem qualquer propósito de inovar a perspectiva musical, mas foi exatamente o que fizeram. Eles iniciaram sua carreira reproduzindo sons da era jazz, em 1977.

Posteriormente, enquanto um dos integrantes curtia o som de Black Sabbath, eles ousaram a experimentar algo novo no mainstream da época: o punk rock; e é a partir dele, juntamente ao jazz, que cravam seu nome na história.

Bad Brains (Imagem: por Glen E. Friedman do livro “My Rules”)

Eles se tornaram um dos grupos mais interessantes devido a força de sua música, a agressividade como tocavam, e o fato de terem fundido em um só os estilos mais improváveis. Adeptos também a religião rastafari, os músicos conseguiram emergir dentro dessa mistura o reggae.

Com músicas com pouco mais de um minuto de duração, a Bad Brains abrange em sua discografia discursos políticos e problemas raciais enfrentados pela população negra, enfocando ainda mais sua força.

Living Colour

Durante os saudosos anos 80, a banda Living Colour assumiu as tendências do momento.

Living Colour (Imagem: Reprodução)

A Living Colour surge em uma era muito específica; de volta àqueles anos, quem fazia rock eram homens brancos e cabeludos. Naquela época, pouco importava a bandeira que era levantada nas letras ou na maneira de tocar, a não ser que viesse de alguma banda branca.

Os membros da Living Colour, apesar de igualmente a todos os artistas previamente mencionados, apresentaram um rock misto com reflexos verdadeiros das raízes dos anos 50, e lutaram incansavelmente para que suas vozes fossem ouvidas. Assim como a Bad Brains, uma de suas narrativas consistia em abordar suas vivências sobre a negritude, expressando o racismo que sofriam nesse meio (e na vida).

Cult of Personality é considerada uma das músicas mais poderosas do rock. Sua letra frisa o ‘‘culto a personalidade’’ de diversas figuras importantes, como Mussolini e Gandhi. A força na fala ‘‘um líder fala / esse líder morre’’ faz uma alusão a Martin Luther King Jr, assassinado em 1968 após lutar anos a fio em prol dos direitos da população negra nos Estados Unidos. Além disso, também é considerada forte devido aos fortes arranhos da guitarra e a potente voz de Glover, seu vocalista.

Em sua musicalidade, o som do baixo em mistura com a guitarra faz com que seja fácil captar o som acalentador do soul e o funk em algumas faixas. Contribuíram grandemente para o crescimento hard rock e fizeram colaborações icônicas com rappers e artistas de outro cenário.

O grupo continua em atividade, apesar de não ser como antigamente, e se juntaram no ano de 2020 para a gravação de uma nova música durante o caso de George Floyd, vítima fatal da brutalidade policial.

Lenny Kravitz

Os anos 90 ficou sob a responsabilidade de Lenny Kravitz. Sustentando as mesmas características musicais que os rockeiros negros das décadas anteriores, Kravitz solidificou sua carreira através dos gêneros funk, rock e o soul.

Lenny Kravitz (Imagem: Reprodução)

Suas músicas possuem um ar um pouco mais leve e menos revolto se comparado aos demais artistas, transitando entre letras românticas e suaves. Ainda assim, fortemente inspirado por Prince e Jimi Hendrix, sua música possui certa influência do rock psicodélico.

Lenny Kravitz pode ser considerado um verdadeiro campeão por ter conseguido, sozinho, construir uma carreira de sucesso sob essa mescla de gêneros que já não lucravam como antigamente. Reinventando tudo o que se conhecia a respeito, ele emplaca em sua discografia hits como ‘‘Again’’, ‘‘It Ain’t Over ’Til It’s Over’’ e ‘‘Always on the Run’’, que dominaram as paradas da época, causando uma sensação de flashback em quem consumia o rock de Hendrix e da Bad Brain.

Atualmente

O rock negro mantém-se presente na atualidade, ainda com Lenny Kravitz e outros artistas que continuam a reinventar e reoriginalizar o original. Willow Smith segue nessa tortuosa missão no mainstream pop punk, mesmo com comentários antiquados que recebe por ser uma mulher negra que gosta de rock.

É cômico que comentários como esses sejam feitos na atualidade, principalmente após diversas fontes e evidências de que o rock possui raízes profundas diretamente conectadas à cultura negra. No entanto, também é compreensível. O rock é um gênero extremamente massificado e popularizado, composto principalmente de artistas brancos europeus que ocupam por completo todo um cenário que tinha tudo para ter um espaço digno às artes dos pioneiros negros.

O que muito se esquece é que, apesar de ter sido fortemente refutado no início, o rock negro foi responsável pelas primeiras manifestações contra o racismo. Foi por causa dele que houveram resquícios de uma possível mudança nesse cenário, que, infelizmente, ainda segue empacado. Foi por causa dele que bandas aclamadas estampam diversas camisetas que vendem como água.

O que é posto em foco é o fato de pessoas negras gostarem de um gênero musical popular, quando, na realidade, o que deveria ser questionado é: se as pessoas não são racistas, por que é que há dificuldade em compreender que o rock possui origens predominantemente negras?

Não é somente uma pergunta por trás de uma opinião, é uma pergunta que evidencia todas as dores enfrentadas pelos artistas aqui citados e pelos negros que o consome. A resposta é simples: a mídia o tornou assim. A prioridade pelo sex appeal do outro lado era muito mais convidativa do que tentar entender a união de vários gêneros que o tornou um só; de oferecer ouvidos para corações que só queriam contar sua realidade (ainda mais inferiorizada).

Claro, ninguém possui a obrigação de consumir aquilo que não o conforta, mas é evidente que durante toda a sua história, a preferência pelo popular tornou-se escancarada.

É importante frisar: o rock e a cultura negra andam de mãos dadas na estrada da musicalidade, e convém a nós não apenas celebrar essa união como reconhecer seu berço e dar o que sempre foi pedido: o mesmo espaço que rockeiros brancos recebem.

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