Os Embalos de Sábado à Noite: uma análise da ascensão a queda da música disco

Calisto Pereira
Hello Band
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10 min readSep 27, 2021

Quarenta e quatro anos atrás, um filme com John Travolta em um terno branco, uma pista de dança mal-iluminada e uma afamada trilha sonora foi lançado. Em poucos meses, Os Embalos de Sábado à Noite se tornou um dos filmes de maior bilheteria de todos os tempos na história do cinema.

Sua trilha sonora liderada por Bee Gees norteou as paradas de álbuns dos EUA por meio ano no início de 1978, e o filme desencadeou a famigerada febre da discoteca em praticamente todo o mundo.

O legado do filme não pode ser subestimado. Poucas pessoas podem afirmar que nunca imitaram (ou ao menos tentaram) os famosos movimentos de dança presentes no longa-metragem. O terno branco que transformou Travolta no forasteiro da classe trabalhadora Tony Manero ainda é considerado um dos figurinos mais icônicos de todos os tempos.

E, em meados do ano de 2016, a pista de dança de 7 x 4 metros na qual ele hipnotizou milhões foi vendida em um leilão por 1,2 milhões de dólares, equivalente a 4 mil dólares para cada um de seus 288 quadrados brilhantes.

No entanto, na realidade, Os Embalos de Sábado à Noite foi um passo razoavelmente tardio na jornada da discoteca do movimento underground ao fenômeno global.

Foi também, para muitos dos aficionados da cena, um pastiche coxo de vivências genuínas, cheia de movimentos clichês que esperar-se-ia com uma visão extremamente genérica ante à música disco.

Posto isto, sucessivamente, discorrerei quanto aos seis estágios principais na evolução do gênero. Notemos que, apesar do sucesso de Os Embalos de Sábado à Noite, dentro de 18 meses de seu lançamento, o disco estava enfrentando uma reação furiosa da qual nunca se recuperou novamente como uma notória potência musical.

Final dos anos 1960

É sempre difícil rastrear as raízes precisas de um gênero musical. Não obstante, um lugar bastante sólido para começar com a discoteca seria o centro de Nova York no final dos anos 1960 e no início dos anos 1970, quando algumas coisas aconteceram em conjunto.

A priori, tudo iniciara-se quando um homem chamado David Mancuso começou a dar festas só para convidados em um depósito de roupas abandonado e mundano na Broadway, onde ele habitava.

David Paul Mancuso (1944–2016), DJ estadunidense.

O espaço, que outrora permanecia cheio de balões multicoloridos e ostentava uma grande esfera de espelhos pendurada no teto, fomentou um caloroso espírito comunitário e ficou conhecido como The Loft.

Um grande audiófilo, Mancuso tocava música eclética — do latim ao africano, do soul ao rock — direto de um toca-discos, em vez de uma jukebox.

Outrossim, outro acontecimento que floresceu nessa época fora uma cena de dança entre travestis negras e drag queens na cidade, em particular o surgimento da moda como meio de auto expressão competitiva. Grupos de drag queens no final dos anos 60 formaram facções rivais com nomes de casas de moda.

Vestidas com fantasias extravagantes, elas iam a clubes (onde, ao contrário do The Loft, a música ainda era fornecida por jukeboxes em vez de DJs), caminhavam por passarelas imaginárias, pegavam uma cópia da Vogue e — no ritmo — congelavam na pose que estavam olhando. Elas virariam a página e repetiam, assim, sucessivamente.

Isto concebeu uma versão corporal de chamada e resposta entre os grupos rivais. Acrescente a isso a abertura de um número crescente de clubes nova-iorquinos baseados em discotecas francesas — lugares como Le Club e Sanctuary — e você logo depara-se com o início de uma cena vivaz.

Divine, Grace Jones e amigos comemoram o aniversário de Jones em Xenon, 1978.

1973

Neste ano, o disco chegou ao mainstream, auxiliado por duas faixas que se tornariam sucessos moderados nas paradas de singles.

Soul Makossa” de Manu Dibango, um disco jazz-funk afro-latino com uma participação de saxofone insana, foi escolhido por Mancuso e outros DJs, incluindo David Rodriguez.

Impossível de ser encontrado em lojas de discos, ele se tornou tão badalado que Ahmet Ertegun e Jerry Wexler, da Atlantic Records, lançaram-no para o público e ele chegou ao topo das paradas musicais.

O refrão da música — “mama-ko, mama-sa, mako-maka-sa” — foi posteriormente reaproveitado por Michael Jackson em 1982 na canção “Wanna Be Startin’ Somethin’”.

O segundo hit gravado neste mesmo ano foi “Love is the Message” de M.F.S.B., que adicionou um brilho dançante e uma orquestração extra luxuosa ao som soul da Filadélfia.

A música se tornou uma espécie de hino, ganhando popularidade com o passar dos meses. Eventualmente, alcançou o número quatro na parada da Billboard 200 no início de 1974.

Também em 1973, a The Gallery foi inaugurada no SoHo. DJs como Nicky Siano, Larry Levan e Frankie Knuckles se tornaram grandes nomes do cenário.

A atriz e cantora Grace Jones dá um grande sorriso para a câmera enquanto festeja no Studio 54 na cidade de Nova York, em 1978.

A ascensão do Disco foi cimentada em um artigo da Rolling Stone em setembro de 1973 intitulado “Discotheque Rock 73”. Nesta peça, Vince Aletti comparou certos discos a “flores exóticas de estufa”. E com isso, as flores criaram raízes.

1975

Embora ainda faltassem dois anos para o lançamento de Os Embalos de Sábado à Noite, a música disco atingiu seu auge em 1975. A evidência de sua ascensão estava por toda parte.

O Loft reabriu em um local maior, e Donna Summer lançou a [longa] canção que aborda temas sexuais sem constrangimento desta Love to Love You Baby, escrita por Giorgio Moroder e Pete Bellotte. De uma forma infalível para aumentar a popularidade da música sem que sequer intentasse-se a BBC a baniu por considerar “inapropriada em demasia”.

Mas 1975 realmente pertenceu a Van McCoy, que teve enorme sucesso com sua faixa The Hustle. A canção, baseada em um riff de flauta cativante, alcançou o primeiro lugar na Billboard Hot 100 e vendeu mais de um milhão de cópias.

Conquanto, foi a dança que deu o nome à música, e não a música em si, que falara da onipresença do disco. A dança de formação do Hustle seguia uma série de passos básicos que permitiam que as pessoas enchessem uma pista de dança e se pavoneassem para frente e para trás, com giros e palmas.

Em novembro daquele ano, o Madison Square Garden de Nova Iorque sediou uma “Disco Dance Party” de quatro horas, na qual cerca de 14.000 dançarinos fizeram danças em formação de discoteca ao som da música tocada por Gloria Gaynor e The Trammps.

O Hustle não era de forma alguma o único baile da cidade; The Walk, The LA Hustle, The Bump e The Bus Stop, todos eles próprios causaram mini-loucuras da febre do disco.

Apesar do incontestável ofuscamento da música disco, ainda assim, a dança em formação continua extremamente popular. Em 2007, milhares de presidiários do Centro Provincial de Detenção e Reabilitação de Cebu, nas Filipinas, executaram a rotina com seus macacões laranja em um pátio de exercícios. O vídeo foi visto no YouTube quase 4 milhões de vezes.

1977

Elton John por volta de 1977 no Studio 54 em Nova Iorque

Em 1977, o disco era um negócio de 4 bilhões de dólares por ano nos Estados Unidos. Aproximadamente de 15.000 a 20.000 discotecas abriram no país nos sete anos anteriores, e 1977 viu a abertura do que muitos consideram como a nave-mãe da discoteca: o Studio 54.

Localizado em um antigo teatro no centro de Manhattan, longe dos armazéns do centro onde a discoteca fez seu nome, o Studio 54 era conhecido por seus shows exagerados, canhões de confete e decoração luxuosa.

Bem iluminado e teatral, o lugar atraiu modelos, poseurs e a multidão.

Poucos dias depois de sua abertura, Bianca Jagger percorreu a pista de dança do Studio 54 em um garanhão branco, sem sela, conduzido por um homem nu com pintura corporal. Era este tipo de lugar que sintetizava a essência, o cerne, do disco.

Multidão aguardando para entrar na discoteca. Fim da década de 70.

Foi também em 1977 quando um produtor de cinema chamado Robert Stigwood cogitou que um artigo de julho de 1976 na revista de Nova York escrito por Nick Cohn poderia dar um bom filme de sucesso.

Cohn havia viajado para o Brooklyn para estudar os hábitos de fim de semana dos jovens em boates suburbanas para uma peça que chamou de Rituais Tribais da Nova Noite de Sábado.

Em um clube chamado Odyssey 2001, Cohn observou centenas de homens ítalo-americanos vestidos com camisas florais, calças justas e jóias de ouro para dançarem e posarem.

Com base no que viu, ele criou um personagem composto chamado Vincent. Foi esse personagem que Stigwood pensou que faria um papel principal fascinante em um filme. Ele escalou John Travolta para o papel e as filmagens de Os Embalos de Sábado à Noite começaram em março.

No entanto, antes que as filmagens pudessem terminar, Stigwood e seu elenco receberam um tiro desagradável na proa. O punk virou o mundo da música de ponta-cabeça na Grã-Bretanha no verão de 1977, e os americanos temiam que ele fizesse o mesmo sobre o Atlântico.

Felizmente para eles, os Sex Pistols não causaram o impacto que muitos pensavam que causaria nos EUA, e a ameaça punk passou. Amparado por canções como “Stayin’ Alive”, o filme foi, como se bem sabe, um sucesso. Conquanto, os veteranos da discoteca viam como um pastiche já exaurido.

Os Embalos de Sábado à Noite e o Studio 54 podem ter chamado a atenção do mundo, mas muitos dos cenógrafos originais concluíram que o filme e o clube haviam pegado a onda da discoteca quando estava em perigo real de desaparecer.

Pôster do filme “Saturday Night Fever (Os Embalos de Sábado à Noite)”, estrelado por John Travolta.

1978

Este foi o último ano em que a discoteca foi uma verdadeira força comercial, antes de entrar no ostracismo. Seguindo o sucesso de Os Embalos de Sábado à Noite, os artistas tradicionais do rock começaram a entrar no show disco. Rod Stewart e The Rolling Stones tiveram número um nos Estados Unidos com “Do Ya Think I’m Sexy?” e “Miss You” respectivamente.

Este também foi o ano de Chic, que alcançou o primeiro lugar com a famosíssima canção “Le Freak”.

Cada single número um nos EUA em um período de oito meses foi um vinil de disco, com apenas duas exceções.

Ademais, é importante notar que 1978 também foi o ano de Village People e seu single de sucesso Y. M.C.A. Claro que, em um viés geral, foi cativante e muito divertido. Mas, ao olhar dos mais ferrenhos críticos de música, também era totalmente ridículo e sem sentido.

A banda surgiu depois que um compositor francês chamado Jacques Morali decidiu criar uma banda disco fabricada em 1977 com um cantor chamado Victor Willis, um homem chamado Felipé Rose que ele viu em um bar gay vestido como um nativo americano, e vários outros dançarinos, incluindo um cowboy e um operário da construção (sendo este um traje comum em discotecas devido aos promotores sem dinheiro que pediam aos clientes que fossem às ‘festas da construção’ para terminar a decoração antes da abertura oficial do local).

O single de estreia do Village People, “San Francisco (You’ve Got Me)” foi um sucesso moderado em 1977, mas apenas prenunciou o enorme sucesso global de Y.M.C.A.

O grupo fazia muito sucesso, mas a discoteca já estava em declínio. No ano seguinte, a esfera de espelhos do disco girou lentamente 360 ​​graus; a próxima revolução já estava em andamento.

1979

A morte da música disco veio repentina e publicamente. Em 12 de julho de 1979, um DJ anti-disco de 24 anos chamado Steve Dahl encabeçou a chamada promoção Disco Demolition Night no estádio de beisebol Comiskey Park em Chicago.

O movimento “disco sucks” ganhou ímpeto de fãs de rock que viram o movimento como vazio, superficial, fraco e sem credibilidade musical.

Steve Dahl ao lado de uma pilha de vinis de disco destruídos, na Disco Demolition Night.

A ideia por trás da promoção — que foi totalmente endossada pelos proprietários do estádio, pois eles pensavam que conseguiria uma grande multidão — era que as pessoas pagariam 98 centavos para participar do evento de dois jogos do White Sox no Comiskey Park, desde que trouxessem um vinil de disco com eles. Entre os jogos, os vinis seriam colocados em uma pilha enorme no meio do campo. Eles seriam então explodidos e destruídos.

Dahl esperava que 12.000 pessoas chegassem. Cerca de 70.000 apareceram. Aos gritos de “disco é uma m — — “, a pilha explodiu conforme planejado. Mas quando fragmentos de milhares de discos choveram, alguns espectadores entraram em campo. Mais se seguiram.

Captura dos reflexos da destruição dos vinis de disco.

Logo uma invasão de campo estava em andamento com pessoas carregando faixas dizendo coisas como “Long Live Rock n Roll”. Fogueiras foram acesas, andaimes foram escalados e as bases do campo foram desenterradas. O sonho utópico e aconchegante da discoteca acabou.

“O beisebol não é mais a história”, anunciou um apresentador de TV chocado enquanto o caos se desenrolava. A polícia de choque finalmente chegou, o campo foi limpo e o jogo abandonado.

Mas menos de dois anos depois de John Travolta entrar naquela pista de dança com aquele terno branco, o movimento disco estava tão quebrado quanto os fragmentos de vinil que jaziam no chão.

Agora, décadas depois, a música disco permanece [só] uma doce memória fantasmagórica do passado, comumente nunca vivida, mas idealizada, sonhada e relembrada com melodias doces do baixo ecoando com os Jackson 5, Donna Summer, Bee Gees, e até indiretamente com retalhos das essências da música disco como bem expressara Dua Lipa em seu álbum Future Nostalgia.

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Calisto Pereira
Hello Band

LGBT • 21 Outonos • Historiador • Aficcionado por Excentricidades Artísticas • Paulistano-Nortista da Gema