Tiro de Misericórdia: crônicas relevantes 46 anos depois

Kaian Moura
Hello Band
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4 min readApr 12, 2023

Um cotidiano escrito e musicado que segue atual.

Da esquerda para a direita: João Bosco e Aldir Blanc em 1982.

“Irmãos, irmãs, irmãozinhos, nem tudo está consumado. A minha morte é só uma: Ganga, Lumumba, Lorca, Jesus.”

Ao fim dos anos 1960, o jovem João Bosco empunhava seu violão madrugada adentro pelo circuito de bares de Ouro Preto, Minas Gerais. Munido de canções em parceria com Vinícius de Morais e um arsenal repleto de músicas instrumentais de sua autoria, o violonista chamou a atenção de Pedro Lourenço, amigo de um estudante de medicina apaixonado por psiquiatria chamado Aldir Blanc. Algumas semanas depois uma Kombi com Aldir e outros amigos desembarcaria em Ponte Nova, interior de Minas, na casa da mãe de João Bosco que, por recomendação de um conhecido, fazia um pequeno exílio após um boato de que o DOPS visitaria de forma nada amigável a terra de ciclo do ouro. Nesta mesma noite, depois de uma macarronada, em um pequeno gravador foram registrados os primeiros frutos de uma das mais simbióticas duplas do cancioneiro popular brasileiro.

Antecedido por Caça à Raposa (1975) e Galos de Briga (1976), Tiro de Misericórdia (1977) foi mais um trabalho realizado pela dupla de compositores sobre temas do cotidiano, odes à boemia, críticas políticas e um cuidadoso olhar aos marginalizados de um país que estava distante do futuro prometido pela sua propaganda. Se o despejo de parte da população do Rio de Janeiro para dar lugar aos acompanhantes da Família Real Portuguesa foi o pontapé inicial para que surgissem as habitações coletivas, os cortiços e moradias populares, o restante da jogada passaria pela ausência de políticas de reinserção e garantias básicas de sobrevivência, após o fim do regime escravocrata às milhares de pessoas que, por sua vez, migravam para os grandes centros e se estabeleciam em antigos quilombos, nas regiões dos morros e pântanos, dando origem às favelas.

Capa do disco “Tiro de Misericórdia”.

O pintor e artista gráfico Mello Menezes assina a capa que desde já nos insere no universo do disco: as ruas, o samba, a religião, a violência e a injustiça social. “Gênesis (parto)” é responsável por abrir o álbum, contando a história de um menino que, contrariando estatísticas e expectativas, nasce no sufoco, de birra e de teimoso, festejado por exus e pelo santo guerreiro Ogum ao som de um samba que reforça a alegria da chegada de uma nova vida. Ao longo do álbum mergulhamos em diversas crônicas escritas pela dupla, como “Jogador”, “Me Dá a Penúltima”, uma verdadeira homenagem à boemia e “Tabelas”, com referências aos personagens do livro de João Antônio “Perus, Malagueta e Bacanaço” que narra as desventuras do mundo da sinuca e do bilhar. “Falso Brilhante” é um bolero cujo o nome já aparecia na canção “Dois Pra Lá, Dois Pra Cá” e mais tarde batizaria o disco de Elis Regina, lançado em 1976. A temática social presente em todo o disco segue em “Vaso Ruim Não Quebra”, que conta a história de um casal de migrantes que se conhece em um caminhão pau-de-arara na busca de um futuro na metrópole e em “Plataforma”, recheada de metáforas que afrontam um autoritário período político representado pelo cordão de isolamento de um bloco de carnaval.

O desfecho do menino Jesus, nascido em “Gênesis (parto)” acontece na música “Tiro de Misericórdia”. Aqui temos uma melodia frenética que, somada à guitarra de Toninho Horta, nos ambienta na batalha do jovem imperador dos morros por seu território e por sua vida (frágil, construída por poeira, marafo e farelo). Em determinado momento a narrativa do plano espiritual, repleta de referências rítmicas e verbais das religiões de matriz africana com Orixás e Exus que surgem um a um para proteger o jovem, abre espaço para refletirmos sobre o iminente fim do personagem no campo da realidade enquanto cita outras importantes figuras históricas como: Ganga Zumba, Patrice Lumumba e Federico García Lorca.

Mais de 4 décadas separam Tiro de Misericórdia dos dias atuais e o disco segue sendo objeto de uma importante reflexão. Segundo o IBGE, o Brasil hoje conta com 17,9 milhões de meninos e meninas, homens e mulheres que também “nasceram de birra” e vivem nas mais de 13 mil favelas do país, sendo 67% representantes da população negra. Em um Brasil que insiste em exterminar pessoas pretas e moradores das favelas por seu terrível resquício escravagista, a história do “menino do corpo fechado” se repete nos nomes de João Pedro, Evaldo dos Santos Rosa, Heloysa Gabrielly, Ágatha Félix e Marielle Franco, apenas para mencionar alguns. Por esse motivo Tiro de Misericórdia, fruto da parceria de João Bosco e Aldir Blanc (morto em 2020 pelo contágio de Covid-19), mostra-se uma obra extremamente atual e pela qual temos a obrigação de dizer (apenas neste caso): infelizmente.

Você pode escutar Tiro de Misericórdia no Spotify ou no YouTube .

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Kaian Moura
Hello Band

Músico, cinéfilo e apaixonado pelos detalhes da História. Uma viagem sonora por acordes, batidas e palavras para nos descobrimos nas voltas do toca discos.