Whitney Houston: os segredos de uma voz que não foi ouvida

Kevilen Bergaminho
Hello Band
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11 min readSep 24, 2021

Por trás de um dom descomunal, existia, no entanto, uma vida cheia de traumas causados por abusos sexuais e problemas com as drogas que, somados aos rumores de sua bissexualidade, destruíram a carreira e a vida pessoal da cantora.

Whitney Houston em “O Guarda-Costas”, em 1992. (Foto: Alamy)

Whitney Elizabeth Houston, ou simplesmente 'Nippy' (apelido em homenagem a um personagem de quadrinhos), nasceu em 9 de agosto de 1963, em Newark, Nova Jersey, EUA. Foi uma cantora aclamada pela crítica como a melhor de todos os tempos, encantando multidões com suas músicas e se tornando uma das artistas femininas mais premiadas de todos os tempos, chegando a ganhar prêmios como: Grammys, Emmys, Guinness World Records, entre outros.
Com o talento excepcional, ela era a rainha dos melismas, sua potência e técnica vocal eram surpreendentes, por isso ela é conhecida até hoje como: “A Voz”.
Entretanto, quem se lembra da grandeza de seu nome, talvez nem imagina a caminhada que ela realizou para chegar à fama, tampouco o quão trágico foi o seu fim.

Depois de nos depararmos com os diversos arquivos, livros e documentários sobre a vida da estrela do pop, temos uma visão diferente dos fatos, que, provavelmente, explicam as quedas que a cantora teve.
O filme “Whitney: Can I Be Me” (2017), dirigido por Nick Broomfield e Rudi Dolezal, deixou notório que Houston, durante uma carreira de sucesso, nunca pôde ser ela mesma, já o longa intitulado “Whitney” (2018), do diretor e roteirista Kevin Macdonald, é um documentário exibido no Festival de Cinema de Cannes, após um ano do lançamento do anterior, que investigou mais a fundo o lado pessoal da mesma.

Para preencher as lacunas desse quebra-cabeça, os documentários mostram depoimentos de parentes, amigos, guarda-costas, funcionários, empresários e todos aqueles que conheceram e faziam parte do círculo social de 'Nippy' (apelido da artista), dentro e fora dos palcos. Além de mostrar entrevistas, shows e cenas exclusivas de backstage, trazendo uma imagem mais íntima da diva que, por anos, foi obrigada a esconder seu verdadeiro “eu” em prol da personagem criada “Whitney Houston”.

Whitney Houston e sua família. (Foto: Divulgação)

Entendendo um pouco sobre Whitney, ela era filha de Cissy Houston, uma cantora gospel que também foi backing vocal de grandes nomes como Elvis Presley e Aretha Franklin. O relacionamento com sua mãe começou a se complicar depois que a família soube da traição dela com o pastor da igreja. Consequentemente, com o divórcio dos pais e durante as turnês de Cissy, Whitney e seus irmãos viveram a infância nas casas dos parentes, como relatou Gary Garland-Houston, o meio-irmão da cantora e ex-jogador da NBA.
Garland também revelou que, ele e Houston sofreram abusos sexuais pela prima Dee Dee Warwick, ainda quando crianças. Uma declaração que é confirmada pela assistente da cantora, Mary Jones (também conhecida como Tia Mary), devido a artista já ter lhe confiado esse segredo.

Quando ainda criança, a cantora foi apresentada às drogas por meio dos irmãos Gary e Michael Houston, após se mudarem para East Orange, em New Jersey, nos anos 60.
Houston cantava na igreja desde novinha, por influência da família religiosa e por boa parte dos parentes serem músicos. Na adolescência, experimentou cocaína pela primeira vez, quando já trabalhava como vocal de apoio nos shows de sua mãe e aos 18 anos começou como modelo.
Com a pressão e severidade da mãe, que jogou em cima dela todas as suas ambições, ainda que tenha treinado a voz de Nippy para que fosse especial, ela foi morar com Robyn Crawford, sua melhor amiga.

Whitney Houston e Clive Davis, em 1983. (Foto: Divulgação)

Em 1983, foi descoberta pelo fundador da Arista Records, Clive Davis, que viu sua apresentação pela primeira vez e se encantou. “A primeira vez que a vi cantando em um show de sua mãe em um clube... foi um impacto impressionante”, alegou Davis ao Good Morning America.

Nippy foi completamente moldada durante dois anos, para ser notada como uma cantora pop, cujo gênero musical pudesse agradar o público geral. Suas raízes com influências na música negra norte-americana foram minimizadas pela equipe de gerenciamento.

“Ela foi cuidadosamente preparada por quase dois anos antes do lançamento do primeiro álbum”, comentou Nick Broomfield. “Então, cada aspecto dela foi cuidadosamente considerado. Ela era um grande projeto. Muito dinheiro foi gasto com ela. Qualquer coisa que fosse muito R&B estava descartada. Eles não queriam uma mulher James Brown. Isso não fazia parte da visão deles. O que, é claro, foi uma visão de muito sucesso”.

Em decorrência dos lançamentos, Whitney começou a ter problemas de aceitação pela própria comunidade em 1989, assim que seus números de vendas alcançaram 25 milhões, ela apareceu no prêmio Soul Train Awards, porém foi vaiada pela plateia quando foi anunciada na categoria que concorria.
Comercialmente funcionava muito bem aquele estilo, entretanto, “Para ouvidos negros, esses discos não tinham um toque natural”, revelou Doug Daniel, promotor da Arista.
Foi devastador para a cantora e com isso, ela tentou reverter essa situação. Foi nesse programa de premiação que ela conheceu Bobby Brown, um homem com muita credibilidade na comunidade. Ela também começou a exigir gravar músicas mais ao seu estilo, saindo da caixa.

Além dos problemas raciais, Whitney teve que enfrentar uma mídia invasiva, a perseguindo desde o começo de sua carreira com especulações sobre sua sexualidade e seu relacionamento com sua melhor amiga, Robyn Crawford. Nos anos 80 e 90, a ideia de uma cantora afro-americana estar se relacionando com uma pessoa do mesmo sexo era inimaginável.
Na biografia não autorizada de Derrick Handspike “Bobby Brown: The Truth, The Whole Truth and Nothing But…” (2008), o autor cita Brown: “Whitney sentiu que tinha que fazer com que os rumores de um caso lésbico fossem embora. Como ela era a namorada da americana e tudo, isso não combinava muito com sua imagem”. Logo ele completou: “Na situação de Whitney, a única solução era se casar e ter filhos. Isso mataria todas as especulações, fosse verdade ou não”.

Whitney Houston e Robyn Crawford. (Foto: Divulgação)

Robyn Crawford não comentava sobre o assunto, mesmo após a morte de Houston em 2012. No entanto, em 2019, pela primeira vez a amiga e ex-assistente da artista afirmou em detalhes no livro de memórias chamado “A Song for You: Minha Vida com Whitney Houston”, confirmando o que era especulado pela mídia: Robyn e Whitney estavam envolvidas em um caso de amor secreto.

Elas se relacionaram pela primeira vez quando eram adolescentes, trabalhavam em um centro comunitário em East Orange, New Jersey. Quando a carreira de modelo de Houston estava dando certo, ela começou a sofrer bullying na escola, e Robyn, que era amiga dos irmãos mais velhos de Nippy, sempre a ajudava. Whitney dividiu seu primeiro apartamento com Crawford, aos 18 anos.
“Não era só uma questão de dormirmos juntas”, ela revelou. “Era uma questão de confiarmos nossos segredos e sentimentos. Éramos amigas, éramos amantes. Éramos uma pessoa só”.

Whitney decidiu acabar com o relacionamento assim que assinou um contrato como cantora profissional pela Arista. Ela temia a exposição. “Se as pessoas descobrirem, nunca nos deixarão em paz”, foi a justificativa da estrela do pop para Robyn, narrado nas páginas do livro.

Whitney Houston e Robyn Crawford. (Foto: Divulgação)

Uma obra comovente e dolorosa, de duas mulheres que, durante toda a vida de Whitney, ficaram em silêncio diante das especulações lascivas.
A cantora tinha a responsabilidade e a pressão de sustentar irmãos, primos e familiares no geral durante décadas. Enquanto isso, Robyn foi criticada e ameaçada pela família da artista. “Eu encontrei conforto no meu silêncio”, desabafou Crawford, que decidiu escrever sua versão com o intuito de reparar o que os tabloides fizeram com o legado de Whitney.

A interrupção de Houston era compreensível, no documentário de Broomfield, há algumas cenas da entrevista de Cissy, mãe da cantora, com Oprah Winfrey em 2013. A explícita antipatia por Robyn, descrito em um livro lançado pela própria Cissy, levou a apresentadora a questionar: “Te incomodaria se sua filha fosse gay?”
“Com certeza”, respondeu a mãe da cantora. “Você não teria tolerado isso?”, insistiu a apresentadora, ainda chocada. “De jeito nenhum”.

Robyn e Whitney continuaram amigas e muito próximas, Crawford foi contratada como assistente pessoal e diretora criativa da cantora, porém, o turbulento casamento da artista com Brown, as separou.
“Eles lutavam pelo afeto de Whitney. Bobby e Robyn tiveram algumas desavenças físicas e houve momentos em que ele nem sempre foi o vencedor”, diz David Roberts, ex-guarda-costas da cantora, no documentário citado inicialmente.

Em 1992, Houston estreou como atriz pela primeira vez, sendo protagonista no filme “O Guarda-Costas”, juntamente com o ator Kevin Costner. O longa atingiu um sucesso mundial, tendo a trilha sonora original “I Will Always Love You”, que chegou a ganhar o Grammy em 1994, se tornando o single mais vendido por uma cantora feminina na história da música. Depois do lançamento, Whitney se tornou ainda mais conhecida, elevando sua vida artística em outra esfera. Na época, Brown foi tomado por um ciúmes descontrolado da esposa, recaindo sua frustração sobre Crawford.

Em uma entrevista com Oprah Winfrey, em 2009, a estrela do pop colocou a culpa em Brown pelo casamento complicado, que, inclusive, incluiu acusações de violência doméstica. A relação durou entre 1992 a 2007.
Por sentir a pressão de uma família religiosa, Whitney conviveu por muitos anos em um casamento infeliz, e isso foi, provavelmente, o seu declínio. Ela achava necessário obedecer o que era pregado como padrão pela sociedade norte-americana. Em 1993, o casal teve Bobbi Kristina Houston Brown, filha única da cantora.

Whitney Houston, o cantor Bobby Brown e sua filha Bobbi Kristina, em 1994 (Ron Galella, Ltd./WireImage/Getty Images)

Em 2016, para a revista Us Weeklys, Brown revelou que Nippy era bissexual. Comentou, também, que sabia do envolvimento de Houston com a assistente pessoal, Robyn Crawford, enquanto eles ainda eram casados.
Brown admitiu que se o romance das duas tivesse a aceitação na época, ela poderia estar viva hoje. “Eu realmente acredito que se Robyn tivesse sido aceita na vida de Whitney, ela estaria viva até os dias de hoje. Whitney não tinha amigos íntimos com ela”.

Entretanto, o ex-marido é retratado como uma figura tóxica no livro de Robyn Crawford, ele frequentemente abusava dela física e emocionalmente, a traindo com outra mulher durante o casamento, chegando até mesmo, a destruir e afetar a autoestima de Houston, por diversas vezes.
À maneira em que a cantora foi se transformando em alguém inalcançável e após uma difícil briga entre Robyn e o casal, a assistente foi obrigada a se distanciar. “Eu não era mais capaz de proteger Nippy”, ela declarou. “Fiz tudo o que podia e, pela primeira vez, percebi que precisava me salvar”.

O afastamento de Robyn, em 2000, causou uma dependência ainda maior do crack e de outras substâncias, à cantora. “Robyn era quem a mantinha unida”, revelou a amiga e jornalista Allison Samuels, no documentário já mencionado anteriormente. “Foi quando as drogas se tornaram tão importantes para ela”. Samuels continua: “Não era legal ter um caso lésbico. Se ela fosse uma artista hoje, ela estaria bem. Tudo seria adorável. Ela provavelmente ainda estaria aqui. Mas naquela época, havia uma tremenda ênfase em ser a garota perfeita”.

Whitney tentou, por diversas vezes, largar as drogas por causa de sua filha. A assistente social Carrie Starks falou em entrevista, que ela só queria ser uma pessoa normal. “Ela não se importava com roupas ou carros chiques. Ela me disse: 'Eu quero largar as drogas para poder ser uma mãe para minha filha'”.

Foto capa do álbum "I Look To You", de 2009. (Foto: Divulgação)

Após ficar fora do alcance da mídia por um tempo, Houston, numa tentativa de mostrar que superou seu problema com as drogas, lançou seu último álbum “I Look To You” em 2009, que chegou a ficar em primeiro lugar na Billboard, tendo sua melhor estreia desde “O Guarda-Costas”.

Contudo, o vício da cantora era tão forte e devastador em sua vida, que a cantora desenvolveu uma aterosclerose em decorrência dos danos em suas válvulas cardíacas, também foi identificado um enfisema pulmonar, havia nódulos em suas cordas vocais e o septo nasal estava perfurado.

Houston sequer conseguiu fazer com que o destino de sua única filha fosse melhor que o seu. Em condições, assustadoramente, semelhantes à morte de sua mãe, três anos depois, Bobbi Kristina foi encontrada desacordada em uma banheira cheia de água, em 2015. Após seis meses em coma, foi declarada morta. A autópsia declarou que Bobbi havia misturado cocaína, maconha, morfina e álcool, antes de morrer. A jovem tinha apenas 22 anos.
“Ela nunca teve uma chance. Ela apareceu quando as coisas só estavam piorando”, desabafou Davis Roberts, ex-guarda-costas de Whitney, em um trecho retirado do arquivo de Broomfield.

A morte de Whitney, no entanto, é consequência de muitas adversidades e decepções: o processo de 100 milhões de dólares que seu próprio pai abriu contra ela, antes mesmo dele morrer; o casamento perturbador de 14 anos; a relação tóxica de uma mãe extremamente religiosa; a não aceitação de sua verdadeira orientação sexual; o abuso sexual que ela sofreu quando criança; a falta de amigos de confiança; os problemas de aceitação dentro da própria comunidade e a mídia que foi imperdoável.
Há uma lista extensa com motivos que contribuíram para o que aconteceu no dia 11 de fevereiro de 2012, quando Whitney Houston foi encontrada inconsciente por Mary Jones (Tia May), numa banheira escaldante no hotel de Los Angeles, Beverly Hilton.

Na autópsia completa de quarenta e duas páginas, são revelados detalhes esclarecedores. O documento mostra que foram encontrados vários frascos de remédio na suíte, dentre eles o Xanax, para controlar ansiedade e depressão. Havia cocaína e um pedaço enrolado de papel branco, no banheiro do quarto. Os médicos-legistas informaram que a morte da cantora se deu por “afogamento acidental”, devido ao ataque cardíaco e ao uso de cocaína.
Indícios de que o conjunto de todas as substâncias encontradas no sangue da artista, somados à cocaína, deixou Whitney sonolenta e com uma confusão mental que a fez cair de bruços sobre a banheira. Com a baixa capacidade motora e respiratória, ela não conseguiu sair da água com vida.

Whitney Houston na premiação American Music Awards de 2009 (Kevork Djansezian / Getty Images.)

A diva do pop morreu aos 48 anos, porém seu legado jamais morrerá. Whitney será sempre lembrada como uma artista fenomenal. Ela cantava, atuava, produzia e modelava. Foi e continua sendo inspiração para muitas artistas femininas. Abriu portas para que outras cantoras negras pudessem entrar no mundo da música.
Se formos relacionar todos os nomes que marcaram gerações, Whitney Houston estará entre eles, se listarmos as vozes mais belas e potentes de todos os tempos, sem pestanejar, seu nome estará no topo da lista.

Houston foi mais uma vítima de uma indústria abusiva que minimizou sua identidade às custas dos seus sonhos, de uma mídia invasiva e de uma sociedade preconceituosa. Foi também prisioneira de seus vícios, de um relacionamento tóxico e de uma família que se aproveitou o quanto pôde.

Em trecho de uma entrevista retirada do documentário “Whitney: Can I Be Me”, uma entrevistadora questiona como ela gostaria de ser lembrada, e a cantora respondeu: “Sabe, provavelmente nem interessa, porque vão lembrar de mim como quiserem lembrar de mim, seja como for. Vão escrever livros, vão escrever isso, vão escrever aquilo e todos vão ter a sua própria ideia. (...) Penso que só quero que as pessoas se lembrem de mim sendo uma pessoa boa. Alguém que se importava, sabe. Alguém que tentou fazer a coisa certa para todos”.

O que fica é a reflexão sobre o título traduzido do documentário em sua homenagem: “Eu posso ser eu?”.
Possivelmente era uma pergunta que Houston costumava se questionar. Mas a resposta foi um, doloroso, não.

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