Belle (2021) ou As Várias Camadas da Dor

Hemerson Miranda
Hemerson Miranda
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4 min readMar 16, 2022

ESSE TEXTO CONTÉM SPOILERS

Quem curte animações japonesas conhece Mamoru Hosoda que, entre outras obras, é responsável por MIRAI NO MIRAI (2018), THE BOY AND THE BEAST (2015), A GAROTA QUE DESAFIOU O TEMPO (2006) e SUMMER WARS (2009). Todas ótimas obras animadas, mas para mim, que assisti a todas, esse mais recente trabalho dele superou e muito os outros.

No filme, a realidade é aquilo que conhecemos: triste, melancólica e entediante, um jogo de realidade virtual chamado U pode mudar isso e se torna a febre mundial, pois ali você pode ser quem você quiser.

Você não pode recomeçar na realidade, mas você pode recomeçar em U.

Com essa premissa sedutora, Suzu, nossa protagonista que é solitária e insegura, cria uma personagem e escreve para si mesma uma nova vida, dando a essa existência o nome de Belle, onde ela pode cantar e ser tudo aquilo que na vida real ela não pode ser, aliviando um pouco a dor de ter perdido sua mãe e a solidão no mundo ao seu redor. Se vendo liberta de si mesmo, uma garota nada popular, ela começa a fazer sucesso no mundo de U, o que a deixa bastante alegre enquanto vê o impacto disso na sua vida pessoal como justamente acontece conosco nas redes sociais.

Após sermos apresentados a esse enredo que já vimos em várias outras obras, a primeira camada do filme é retirada e o que vemos é uma verdadeira releitura de A Bela e a Fera. Quando a Besta, um personagem misterioso, surge em um show lotado em que Belle vai cantar, vemos as semelhanças com a famosa história de romance.

A Besta é um personagem reativo e extremamente forte, perseguido constantemente pelos que se denominam a polícia de U. Ninguém sabe quem ele é ou de onde veio, mas que vive fugindo, derrotando personagens fortes e cuja aparência chama a atenção pelos hematomas em suas costas, visíveis e luminosos em sua capa. Belle imediatamente se sente atraída, não romanticamente, mas por curiosidade, pois sente no personagem uma melancolia que imagina esconder um significado e um segredo muito profundos por trás, o que a faz buscá-lo para conversar e o entender, mas de forma infrutífera, já que ele não quer papo com ninguém.

As semelhanças com o conto romântico param por aqui, mostrando esses dois personagens antagônicos, pois o que se desenrola não é um romance açucarado e sim a queda da última camada dessa obra que traz um tema muito importante, triste e comum em muitas famílias.

Após vermos o contraste entre a vida de Suzu e de Belle, o âmbito social em que a jovem vive, sua família, sua única amiga, como ela é na escola e tudo aquilo que a tornou a pessoa que é, ela, com ajuda de outras pessoas, acaba descobrindo quem é a Besta. E é aqui que a ambientação do filme nos pega de jeito. Pois Mamoru Hosoda nos coloca em um local conhecido, já que todo mundo conhece a história de A Bela e a Fera e de repente nos desloca, desconstruindo todas as nossas expectativas e nos levando a algo mais sombrio por baixo de tudo.

Por alguns momentos pensamo que a Besta pode ser o amigo de infância de Suzu, a quem ela sente uma paixão que não consegue expressar. Mas em um esforço conjunto acabam descobrindo que a pessoa por trás do misterioso personagem é um garoto que, com seu irmão mais novo, sofria abuso físico e psicológico do pai. Nesse momento a Suzu começa a buscar a redenção dessas duas crianças, no que se torna a sequência sublime desse filme.

O que aparentava ser uma história de princesa e príncipe se torna a reflexão triste sobre o que tantas crianças ao redor do mundo passam nas mãos de pais intolerantes. Crianças buscando em jogos e redes sociais a fuga de si mesmo por viver em uma realidade tão dolorosa. Ou mesmo que entram nesses lugares para exorcizar todo o seu ódio por trás de um avatar qualquer. Pessoas que, cansadas de suas vidas, querem viver outra, mesmo que falsa.

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Hemerson Miranda
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Já pensou no dia em que os alienígenas invadirem a terra em busca de vida inteligente e todos nós ficarmos sem smartphones?