Desacontecimento

Lembro de você enquanto preparo meu café. O aroma me recorda a tua voz e a paz que ela me causava, a fumaça como que desenhando teu belo rosto na tela do tempo.

As coisas hoje estão assim, desde que nossos mundos silenciaram um para o outro, o presente é tecido pela tua ausência, pois era esperado que cada parte do meu dia lembrasse você, já que todas as nossas conversas giravam em torno das trivialidades do cotidiano, nós discutíamos os detalhes mais ordinários dos dias e é por isso que cada momento de um dia comum me remete a você.

Enquanto eu faço círculos no coador, jogando a água quente no pó, me vem em brumas seus cabelos negros espiralados em cachos. Mas a realidade é atordoante e se espalha como a fumaça. O odor do café é o teu cheiro entrando em meus pulmões.

Você riria de mim, porque eu mesmo ri, das minhas tentativas patéticas de substituir nossas conversas com outras pessoas. Claro que eu já sabia que seria um fracasso de proporções bíblicas, mas eu teimei em tentar. Como se não fosse difícil te substituir. Como se outra pessoa pudesse manter tão fluída uma conversa que, como um pêndulo, oscilava entre amenidades e questões existenciais.

As roupas continuam nas gavetas, as panelas nos armários, o espelho ainda me reflete no banheiro, o café ainda é coado e o requeijão ainda é passado no pão francês. Lá fora o silêncio continua, mas o mundo que se debate, enlouquecido, é o que existe dentro de mim. A solidão recrudescendo a cada olhar para as coisas comuns. Eis aí a fragilidade do fiapo de linha do tempo.

Não apaguei tuas fotos nem as conversas, deixei do meu lado, como algo que eu deixo na minha mesa que não quero mexer e sequer olhar, mas sempre está ao alcance da minha mão. Tudo grita teu nome porque você estava aqui enquanto minha vida acontecia, até você desacontecer.

Os dias passam arrastados, como unhas grandes em um quadro negro, arranhando. Eu sempre desejei que a semana passasse lentamente para que os domingos não chegassem logo, pois conheço minha solidão. Agora todos os dias se tornaram domingo.