Diálogo I

Hemerson Miranda
Hemerson Miranda
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4 min readFeb 12, 2019

Ela está sentada no chão numa espécie de posição de lótus desleixada. Seus cabelos curtos e cacheados caem no rosto, úmidos, revelando que acabou de se banhar, então eu sinto o cheiro de sabonete. Sua voz corta o silêncio como uma lâmina.

— Hemerson, no seu Evernote tem vários contos que você começou a escrever e não continuou. Alguns tem no máximo dois parágrafos. Que aconteceu?

— É que… — um pensamento me interrompe. O que ela estava fazendo bisbilhotando meu Evernote? Olho para seus olhos grandes, esperando ainda de mim uma resposta. Ergue uma sobrancelha, sua boca se abre num sorriso.

Estou lendo uma trilogia de Brandon Sanderson e olhar para ela me lembra desses livros. Ela tem argolas pendendo graciosamente de suas orelhas, uma pulseira no braço esquerdo, uma corrente em volta do belo pescoço e um aparelho nos dentes. Nessa trilogia existe uma arte milenar chamada feruquemia. Nessa arte, seus praticantes conseguem guardar informações em metais, assim como nós guardamos em pen drive. Eles geralmente guardam as informações, como uma enciclopédia, em jóias, ornamentos. Eu olho para ela com esses metais em seu corpo e me pergunto que informações ela guardaria em cada um deles. Resolvo responder.

— Às vezes eu tenho a ideia de um início, a frase me parece um bom começo, mas não sei como continuar a história. Então deixo guardado ali pra em outro momento eu abrir e conseguir continuar. Geralmente dá certo.

Ela, a sua expressão, não parece satisfeita. Ainda mais quando eu falo sorrindo e coçando a parte de trás da minha cabeça. Quando ela fala suas palavras são como diálogos emprestados de livros.

— O que tava fazendo então que não vai terminar algum?

— Eu tava jogando.

— Jogando? — ela franziu o cenho. Em alguns momentos isso significa que eu estou em apuros. Não sei se é o caso, no entanto. — Jogando o que? Aquele jogo de zumbis no celular?

Assenti com a cabeça. Seus olhos negros lançam faíscas na minha direção. A corrente em volta de seu pescoço poderia guardar informações sobre arquitetura, sobre como aquela coluna de carne sustenta sua preciosa cabeça. Ela estala os dedos para me acordar de meus devaneios e então sou eu que franzo o cenho.

— Você sabe que não gosto que estalem os dedos pra mim.

— Você sabe que eu não gosto de ver um texto inacabado.

Sento no chão em frente a ela. Meu corpo desaba com o peso de uma existência. Solto um longo suspiro. Ela me olha, séria. Eu ergo uma sobrancelha, olho para o lado tentando conter um sorriso. Tento falar sério.

— Beleza, você tem problemas com coisas que não tem finais, eu sou assombrado por demônios de contos inacabados. Me dê um crédito. Tolkien é um dos escritores mais importantes de todos os tempos e imagina só o nome de um dos livros dele? “Contos Inacabados”.

Eu gesticulo, como se tivesse ganhado uma disputa. O sorriso torto dela não é nada bom. Ela não está rindo para mim, está rindo de mim. Talvez em seu aparelho ela guarde informações sobre oratória, sobre a beleza e a capacidade camaleônica das palavras. Afasto logo esse pensamento para que ela não perceba que me distraí mais uma vez.

— O livro tem esse nome, Hemerson, porque ele morreu antes de concluir os textos. Quer que isso aconteça contigo? Porque eu posso facilitar pra você.

— Sinto — eu digo erguendo um dedo e olhando para ela, — certa hostilidade vinda de você. — usando as duas mãos eu faço um gesto como de afastar uma cortina na minha frente e continuo: — Tem um lado negro aí, uma perturbação na Força.

Ela faz um bico, rugas na testa, solta um suspiro cansado e ameaça jogar o livro que tem nas mãos em mim. Eu finjo me proteger, afinal é uma versão capa dura de O Livro do Desassossego. Eu não possuo nada de metal no meu corpo, além de partes pequenas nos óculos, nas hastes, dois parafusos. Nesse metal eu poderia guardar informações sobre ela. Sobre seu jeito de conversar e transformar um simples diálogo em algo mais profundo. Sobre a forma ao mesmo tempo poética e pragmática que ela tem de descrever a melancolia.

— Tenho uma pergunta pra você.

— Melhor você ir escrever. — ela volta a ler o livro, me ignorando.

— É sério. Hey, não ouse me ignorar.

Silêncio.

— Então não vou fazer o café.

Sua cabeça levanta bruscamente, as argolas balançando. Ela poderia guardar nelas conhecimento sobre música, sobre o sotaque das pessoas, ou ainda mais importante: sobre o silêncio.

— Que é? — ela é uma tigresa que acabou de guardar as unhas.

— Quer assistir um filme?

— Qual?

— Nossa, mas sua alegria parece a de um coveiro.

— Fala logo.

— As Irmãs Munakata. É um filme japonês antigo.

— E por que eu assistiria? Eu quero que você escreva alguma coisa pra eu ler.

— Por que tem uma frase no filme que você vai gostar.

Ela me olha com ar duvidoso.

— “A verdadeira novidade é aquilo que não envelhece, apesar do tempo.”

— Tudo bem, vai fazer o café.

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Hemerson Miranda
Hemerson Miranda

Já pensou no dia em que os alienígenas invadirem a terra em busca de vida inteligente e todos nós ficarmos sem smartphones?