Festa

Hemerson Miranda
Hemerson Miranda
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17 min readMar 25, 2022

I

Eu não costumo ir a reuniões e festas com muita frequência por uma razão simples e para mim bastante plausível: as pessoas são melhores na minha cabeça. Possuo uma ideia bem fundamentada da natureza humana baseada na minha misantropia generalizada. Contudo tem momentos em que minha boca prega alguma peça em mim e, enquanto meu cérebro procura a melhor resposta para declinar de um convite que com certeza eu não gostaria de aceitar, meus lábios se mexem mais rápido para formar a frase “Tudo bem”.

Dessa forma, estou num apartamento que, por não ser muito grande, está lotado de adultos em pé, conversando acima de uma música ambiente, com copos descartáveis de refrigerante, cerveja ou vinho barato. Não bastasse isso, esses adultos, em sua maioria, tem filhos. Os que não tem, são casais que pretendem ter e seus olhares brilham ao verem os pequenos anjos caídos correndo para lá e para cá.

Aparentemente sou o único solteiro por aqui, mas conheço a maioria dessas pessoas. Antigos colegas de escola, de trabalho, ex-vizinhos, agora casados, pais, mães, fazendo o curso para avós. Todos eles, sinto, me lançam um olhar de compaixão velada, como se se perguntassem “Como um homem com mais de 30 anos ainda vive só?”, um olhar de compaixão, mas desesperançado, e eu olho para meu corpo atrás de alguma doença contagiosa e cheiro minha pele a procura de um odor desagradável, mas não encontro nada.

Essas pessoas que me olham, e algumas delas chegam para começar uma conversa, mas logo desistem, pois, o assunto que elas buscam não pode ser partilhado por alguém sozinho, elas acreditam que o mundo funciona melhor numa padronização e sou totalmente o oposto ali. Elas se jactam de buscar a própria individualidade, sua identidade, mas a encontram sendo iguais aos outros, seguindo o mesmo ritmo padronizado pela sociedade. Portanto, nesse caso, sou um pária.

Estou encostado numa janela cuja vista dá para o M gigante do MacDonalds. Sentada um pouco próxima está uma mulher grávida, esposa de um amigo meu dos tempos de escola. Aos seus pés está uma criança, filha sua, com um objeto metálico que faz um som terrível quando ela bate no chão, mas o som parece ser agradável a essa criança, pois, ela não para. O barulho metálico reverbera no meu corpo, penetra na raiz de meus dentes. A mãe dessa criança, ela parece estar drogada. Seu olhar é perdido no horizonte e seus movimentos são de um viciado que acabou de injetar. Ela vê o que a criança está fazendo, mas apenas ignora, mesmo sob os olhares de reprovação de outras pessoas. O que me deixa mais confortável é saber que não sou o único incomodado.

“Escute aqui, sua praga, pare com esse barulho!”, essa é a vontade que eu tenho de gritar com a criança, erguendo-a até meu rosto.

Quando eu soube um dia desses que uma prima foi avó aos 36 anos fui engolido por uma tristeza que demorou a ir embora.

Um amigo se aproxima de mim com dois copos na mão. O líquido é âmbar, ele me entrega um e pelo cheiro vejo que é uísque. A esposa dele está em algum outro lugar, conversando com outra mãe sobre jardins de infância, mamadeiras e produtos da Avon. Seus filhos estão brincado com outras crianças, todas com as expressões rudes que possuem alguns filhos.

“E aí? Quando vai ser papai?”

Ele me pergunta sempre isso e penso que não se cansa, como se tivesse a esperança de que em algum momento da vida eu desse uma resposta diferente. Me parece uma roleta russa.

“Não quero ter filhos e olhando pra crianças assim a vontade de não ter cresce cada vez mais.”

Apontei para a garota com o objeto metálico na mão, que ainda o batia no chão, como um anão forjando alguma ferramenta. O que eu não percebi é que a mãe dela olhou para onde apontei e ouviu claramente minhas palavras. De repente a aura de drogada fugiu dela, sua audição se renovou, seus olhos ganharam vida e seu busto arfou de fúria. Se pudesse, os olhos dela teriam me lançado raios. Levantou todo o seu barrigão da cadeira, pegou a mão de sua filha e saiu bufando para a cozinha após me lançar um olhar de fuzil sendo descarregado.

Meu amigo, do meu lado, viu tudo, ergueu as sobrancelhas e depois riu.

“Você não mudou nada”, ele disse.

Dizendo que voltava já, ele foi até a cozinha. Nesse momento uma garotinha chega perto de mim e me olha como se olha para o sol quando ele fere nossa visão.

“Moço, pode abrir isso pra mim, por favor?”

A altura da menina chega um pouco acima do meu joelho. Sua mão estende até mim uma garrafinha de iogurte de ameixa. Pego o objeto e tiro a tampa, me perguntando onde estão os pais dessa criança. Seus olhos brilham quando devolvo a garrafinha e, quando ela pega com as duas mãos, sua boca se abre num pequeno O, mas para, olhando para mim e dizendo um breve “obrigado”, correndo para outro lugar em seguida, com seu iogurte de ameixa e seu parcial conhecimento da cortesia e da língua portuguesa.

Alguém entra pela porta de entrada. É um casal com um carrinho de bebê. O cara eu não conheço, mas a mulher sim. Ela fez um curso comigo em algum lugar. Seu olhar encontra o meu e me reconhece, sorrindo, mas logo sua atenção é voltada para as pessoas que se acumulam ao redor do carrinho de bebê para olhar a criatura ali dentro.

O que começo a ouvir é o repertório de frases de pessoas que veem um recém-nascido. Principalmente as mulheres, afinando suas vozes, falando umas línguas estranhas, etc. Em algum momento eu consigo visualizar a criança no carrinho e só o que eu consigo pensar é em quanto as pessoas são falsas.

O garoto tem uma cabeça enorme e as linhas de seu rosto o fazem lembrar de minha avó. Ele olha para as pessoas como se algo cheirasse mal, mas recebe todos os elogios possíveis, como se fosse a criança mais bonita do mundo.

Meu amigo volta com um prato de azeitonas e coloca no parapeito da janela para podermos comer.

“Mas olha quem chegou!”

Ele olha para o casal recém admitido em nosso meio. Ele também fez o mesmo curso e conhece a mesma mulher. Uma loira de lábios grossos com clavículas saltadas.

“Quem diria que ela casaria tão cedo. E ela era doida por você, não é?”

Eu me engasgo com a bebida e uma queimação vai morrendo na minha garganta.

“Do que diabos você tá falando?”

Ele me olha como se eu estivesse com senilidade.

“Vai me dizer que nunca percebeu?”

“Na verdade, sou péssimo em detectar essas coisas.”

“Bem, agora é tarde. Ela casou e é mãe. Quer dizer… tarde, tarde, talvez não seja, hein?”

Ele sorri para mim, erguendo seu copo esperando alguma afirmação de minha parte, mas seu sorriso morre quando vê que de mim não sairá nada, e balança a cabeça, desconsolado.

Olhei para o casal. Então uma sensação estranha começou a nascer dentro de mim. O cara ao lado da mulher tem a cabeça em formato oval e o cabelo cortado quase no zero. Acima do lábio superior ele cultiva um ridículo bigode escuro, parecendo que passaram um dedo de piche abaixo de seu nariz. Ele usa uma camisa polo muito apertada, o que favorece seus bíceps, mas também deixa à mostra uma barriga que desaba no cós de suas calças e se divide em duas partes a partir do umbigo.

Me pego pensando “Pera aí, fui trocado por isso?”.

É um pensamento idiota, claro. Eu nem sequer sabia que a mulher tinha algum interesse em mim, mas meu amor-próprio, mesmo raquítico, ataca e me questiona, ou melhor, a questiona. Como ela pode me trocar por alguém tão ridiculamente caricato? Sorrio de minhas próprias reflexões e entorno todo o uísque. Aí vejo que meu amigo me olha não entendendo a razão de meu sorriso e, buscando algo que fazer nessa situação, pega meu copo e diz que vai encher, indo para a cozinha.

“Moço, você tem sapato dourado?”

Olho para os lados, pensando que é uma alucinação. Olho para baixo e é a garotinha do iogurte. Ela está olhando com seus grandes globos oculares para mim, suas bochechas erguidas, suas mãozinhas para trás.

“Não, eu não tenho.”

“Eu tenho. Olha!”

Ela senta no chão e ergue as pernas que saem como gravetos brancos por baixo do vestido. Balança os pés com sapatilhas douradas.

“Que bonitas. Mas é melhor você sair do chão ou vai sujar seu vestido.”

Ela se ergue séria, sentindo a gravidade do seu ato. Passa a mão no vestido com força para que nenhuma partícula de poeira permaneça. Olho para os lados.

“Mas cadê seus pais?”

“Tão ali.”

Ela aponta um dedinho gordo para a cozinha, onde uma mulher que claramente, pelos traços do rosto, é sua mãe, que está ao lado de um homem com rabo de cavalo. Eles conversam com a esposa do meu amigo, que agora está voltando com meu copo cheio.

“Oi, Eduarda. Por que não tá brincando com a Sheyla?”

A garotinha olha para baixo, com os braços ao lado do corpo, caídos. Por alguma razão, eu gostei dessa menininha. E por alguma outra razão acredito que ela vai me surpreender.

“O que foi, Eduarda? Não encontrou a Sheyla? ”

“Ela não quer brincar comigo.”

“Ué, por que não?”

“Porque ela disse que meus sapatos não são dourados de verdade.”

Sheyla, até onde lembro, é a filha de 5 anos desse meu amigo.

“Ah, ela não falou isso”. Ele tentou colocar nessa frase um misto de incredulidade, de crítica e de compreensão. Suponho que para a Eduarda não funcionou muito bem.

“Ai eu falei pra ela que a sandália dela também não era de verdade da Xuxa, era dela mesmo. E ela me mandou embora.”

Eu não pude segurar a risada. Meu amigo sorriu, mas mais sem jeito que de diversão. Disse que ia falar com Sheyla e saiu para algum lugar, me deixando com a Eduarda.

“Que refrigerante esquisito esse que você tá bebendo.”

“É bem ruim, melhor você beber aquele que seus pais tão bebendo.”

“Você tem filha?”

“Não.”

“Que pena. Eu queria mostrar meus sapatos dourados a ela.”

E ela saiu correndo para algum lugar.

Olho para o MacDonalds lá ao longe e magino o cheiro de hambúrguer com queijo, mas um vento curvo me traz o aroma de morango cremoso.

“Quanto tempo!”

É a loira de clavículas saltadas. Ela não está com o carrinho de bebê, o que eu agradeci a algum deus inexistente numa oração silenciosa. Traz na mão uma lata de coca-cola diet.

“Olá, tudo bem?”

Trocamos beijos nas bochechas atrapalhados.

“Não sabia que você estaria aqui.”

“Na verdade, nem eu. Não faço ideia do que estou fazendo num lugar cheio de casais que tem filhos.”

A pergunta sobre eu ter filhos não veio, felizmente. Em seu lugar um sorriso. Um colocar de mecha de cabelo atrás da orelha, numa tentativa de dar tempo para encontrar algum assunto. Suspirei fundo, mas por dentro. Sei quando sou eu que tem que dar continuidade a uma conversa.

“Qual o nome do seu bebê?”

“Enzo.”

Uma lâmina fria passa pela minha garganta. Um seixo cai no meu estômago vazio. Várias palavras se unem na minha cabeça como um exército preparado para a guerra, mas felizmente a minha boca esboça apenas um sorriso.

“Moça, ele não tem filha.”

Eduarda volta com sua entrada triunfante e aponta um dedo pequeno e acusador para mim. A minha amiga, usando uma voz agora calma e etérea, se curva para a garotinha.

“É mesmo? Que menina linda você é.”

“Por que você não dá uma filha pra ele?”

O uísque incha em minhas bochechas. Quero rir e chorar ao mesmo tempo, mas só depois de dar um chute na Eduarda.

Engulo a bebida e parece que estou engolindo uma pedra quente. A minha amiga ri nervosamente e um rubor começa a se formar em seu rosto. Falo para quebrar o silêncio.

“Eduarda, pelo amor de Deus, mostre a ela seus sapatos dourados.”

Ela se senta novamente no chão e ergue as perninhas, feliz.

II

Eu ainda permaneço do lado da janela. Então quando vou buscar um copo de água na cozinha, passando entre os casais e as crianças, em meio ao burburinho de conversas as quais eu não estava acostumado e suponho que nunca estarei, uma mão toca meu ombro. Quando viro, sou abraçado fortemente.

É outra amiga, dessa vez dos tempos de trabalho. Jovem, chegando ainda aos 30, mas com dois filhos, que pelo jeito não estavam ali. Cabelos curtos, magra, vestido comprido negro de costas nuas. Seus olhos claros sempre me deixavam hipnotizados. Ela me abraça com tanta força que sinto seus seios pequenos se esmagando no meu peito. Talvez pelo tempo que não nos víamos, talvez também como uma forma de expressar carinho e agradecimento por eu ter ajudado com seus filhos, numa época em que ela havia se separado do marido.

“Não acredito que você tá aqui.”, ela se afasta e me olha com seus lindos olhos claros. Sorrio.

“Na verdade, nem eu acredito”, é nesse momento penso que preciso aumentar meu vocabulário, talvez ler mais sinônimos.

Ela sorri e me abraça mais uma vez. Em seguida me apresenta um cara negro de óculos como seu namorado. Ele aperta a minha mão com força, o tipo de coisa que eu já estava sentindo falta nesse lugar. Então ela diz a ele que vai colocar os assuntos em dia comigo e pergunta se ficaria bem sozinho. Ele assente, bate no meu ombro e volta a conversar com o marido da loira de clavículas saltadas, meu algoz.

Me sinto esquisito por estar sendo levado pela mão por essa minha amiga, tendo ela deixado de lado o seu namorado para ficar conversando comigo. Até esqueci do meu copo de água. Ela me leva até a sala, onde um sofá está desocupado e eu não faço ideia de como não tinha percebido isso antes. De repente em sua mão surge uma garrafa de vodca e me pergunto se ela faz truques de mágica. Enche meu copo e o dela. Seus movimentos são graciosos, mas rápidos, e sinto certa dificuldade em a acompanhar porque sua euforia é enorme. Isso me deixa confortável, claro, pois em meio a tanta gente que eu conheço, ela foi a única que demonstrou verdadeira alegria e interesse em me encontrar.

“Meu Deus, quanto tempo. Você parece estar bem. Continua escrevendo?”

Essa pergunta geralmente é feita pelas pessoas como uma forma educada, então após a minha resposta afirmativa elas apenas mudam de assunto, esquecem a minha resposta e vida que segue. Ninguém mostra real interesse. É como a pergunta “tudo bem?”. Mas com ela é diferente. Sempre gostou do que eu escrevi, sempre me apoiou e quando eu falei que sim, continuava escrevendo contos e no momento estava trabalhando em uma ficção e em paralelo com uma espécie de autobiografia, seus olhos claros brilharam com a intensidade de mil sóis.

Ela é uma das poucas pessoas que conhece muitas coisas sobre mim. Sabe da minha dificuldade de socializar, mas de minha facilidade em colocar uma boa conversa de variados assuntos em movimento. Sabe de minha tristeza natural e de minha visão sobre as coisas e as pessoas. Então sim, em todo o tempo em que estou aqui, essa é a primeira vez e a primeira pessoa com que me sinto bem.

“Você conhece todo mundo aqui?”

“A maioria. Amigos de escola, de trabalho. Essas coisas.”

“Nada de criar novas amizades?”

“Mas claro. Essa aqui, por exemplo, é a Eduarda.” A garotinha passava na minha frente quando eu peguei delicadamente seu braço. Ela falou “oi” e eu pedi para que ela mostrasse seus sapatos dourados. Dessa vez ela não sentou no chão, mas ergueu uma perna trêmula e depois a outra, em seguida saiu saltitando.

“De quem ela é filha?”

“Não faço a menor ideia.”

Ela cai na gargalhada. A vodca faz seu caminho pela minha garganta e sinto o seu choque com o uísque. Uma onda anestésica passa por trás de meus olhos.

“Como vão as crianças?”

“Crescendo. Vez ou outra perguntam por você.”

“Imagino que sim.”

“Elas estão passando as férias em um clube, por isso não vieram. “

“É uma pena, pois gostaria de vê-los. E vejo que você já encontrou um novo amor.”

“Você deveria tentar também.”

“Não tenho mais jeito pra isso. Na verdade, eu tenho pensado ultimamente que na verdade eu nunca amei ninguém.”

“Besteira. Claro que amou.”

“Tenho minhas dúvidas.”

Não quis começar a numerar minhas razões para chegar a essa conclusão. Ela parece feliz, não vejo necessidade de a cobrir com um manto de tristeza. De repente ela saca um celular de algum lugar. Começo a suspeitar que ela realmente faz truques de mágica, pois não sei de onde diabos esse celular saiu.

“Vem cá.”

Ela se aproxima muito de mim, sua cabeça batendo na minha, sua mão esquerda erguendo o celular na horizontal para tirar uma selfie. A selfie, um marco da tecnologia, a primeira vez que tivemos a oportunidade de capturar o tédio.

Ela sorri para uma plateia invisível. Seus cabelos têm um cheiro muito gostoso. Eu sorrio também. Então um olho fecha e abre na câmera do celular. Conversamos, acho, que quase uma hora, até ela perceber que eu estava desconfortável com alguma coisa e perceber que ela tinha deixado o namorado de escanteio e quase esquecido. Falei que era isso que estava me incomodando e ela entendeu. Me deu mais um abraço forte e demorado. Se eu não a conhecesse bem poderia achar que foi um abraço lascivo também. Bem, talvez tenha até sido. Ela sai, repetindo veementemente que eu deveria visitá-los e ver as crianças, eu aquiesço com a cabeça e ela volta a se enroscar em seu namorado. Volto para perto da janela, para tomar ar.

Meu celular começa a vibrar e várias notificações no instagram surgem.

Sou eu marcado na selfie dela.

Sou eu, a máscara sorridente sobre a apatia misantrópica.

Sou eu surgindo nos comentários de pessoas que estão muito longe, em outros estados, em outros países e que me conhecem.

Sou eu nos comentários de quem está aqui nesse apartamento e inclusive sendo chamado por mais uma amiga que está aqui e não tinha me visto.

Começo a pensar que esse não é um apartamento tão pequeno assim.

III

Eu tinha conseguido uma garrafinha de água com gás, o que me deixou feliz. Eu bebo nesses lugares para me ajudar a conversar com as pessoas. Do contrário fico imerso em meu próprio mundo e posso começar a ser uma presença incômoda. Então a água com gás ajuda a equilibrar o nível de álcool na minha cabeça, ou ao menos é isso que sinto, ou é essa mentira que conto para mim mesmo.

A amiga que ainda não tinha me visto e que comentou na foto onde fui marcado no instagram estava, pelo jeito, me procurando. Quando eu tomava um longo gole de água ela apareceu na minha frente, apontando um dedo acusador e erguendo a voz quase rasgando a garganta.

“Aí está você!”

Obviamente ela estava ficando bêbada. Falou que o marido teve que ir em casa pegar alguma coisa e voltava em meia hora. Falou que tinha 3 filhos e todos estavam na casa do pai, seu primeiro marido. Quis fumar e me arrastou até o quintal, onde sentamos num batente. Ela começava a atropelar as palavras e eu estava com a impressão de que isso não ia dar muito certo.

“Como você tá?” sua pergunta veio com uma cortina de fumaça. Eu só fumo quando realmente me dá vontade, uma coisa que acontece muito raramente.

“Depende de quando você pergunte. Nesse momento estou me sentindo estranho.”

“Eu sempre achei você engraçado.”

“Isso é um elogio?”

“Pode ser.”

“Então obrigado.”

“E aí, já casou?”

“Já. Já descasei também.”

“E agora tá namorando?”

“Não.”

“Você precisa namorar. Vou te apresentar uma amiga.”

“Agradeço, mas não precisa.”

“Claro que precisa. Você não pode viver sozinho. É triste.”

“Tenho me saído bem ultimamente.”

“Conversa. Você diz isso da boca pra fora.”

“Geralmente é assim que as palavras saem.”

Seus olhos estão semicerrados, mas não sei se é de irritação.

“Sério, você não se sente só?”

“Sempre fui só. Simplesmente me acostumei a isso.”

“Ainda pensa em se matar?”

“Ao menos uma vez na semana.”

“Já tentou de novo?”

“Me mostraram um comprimido pra suicídio, mas o efeito colateral era ser laxante, então desisti.”

Ela me olha com rugas no meio das sobrancelhas. Não lembro até onde ela consegue detectar sarcasmo, mas eu no momento não ligo, apenas bebo o restinho de vodca no meu copo. Então ele é cheio mais uma vez de uísque, que o meu amigo trouxe por trás de mim, me deu um sorriso cúmplice, olhando de soslaio para a mulher ao meu lado e foi embora.

Esses truques de mágica já estão me irritando.

“Eu acho que você é louco.”

“Ou criativo. Tem vezes que não se nota bem a diferença.”

“Vai por mim. Chega uma idade em que você se sente tão só que vai dar graças em ter um relacionamento, mesmo que não seja as mil maravilhas.”

Entendo o que ela quer dizer, pois ecoa o pensamento de milhares de pessoas ao redor desse vasto mundo. Pessoas essas que, infelizmente, eu conheço uma boa porção. Aperto a junção de meus olhos entre o polegar e o indicador. O que vou falar para essa mulher? Nada. Ela está vivendo assim, com essa ideia de vida a qual ela se apega. Não sou padrão para ninguém para dizer o que ela deve fazer, justamente como ela está fazendo agora. Então apenas a ouço. Não busco convencer ninguém de nada, pois eu mesmo não estou convencido de muita coisa. Existem pessoas que se colocam em um relacionamento ruim e permanecem nele unicamente para não se sentirem sozinhas. E, na boa, quem pode julgá-las?

Há mais notificações do instagram saltando em meu celular. Pelo jeito muita gente na internet me conhece. Alguém passa a me seguir e em seguida me manda uma mensagem direta, privada. Ela diz “Preciso falar com você”. É uma mulher. Não sei quem é, pois o nome é um apelido e a foto é apenas uma silhueta. Busco em suas fotos alguma informação, mas só tem imagens de um gato, livros e café. Na mensagem ela manda um número de celular. O DDD eu não reconheço. Decido verificar isso depois. Então guardo o celular. A minha amiga está mexendo no seu e quando encontra algo que está procurando coloca o celular a poucos centímetros do meu rosto e grita:

“Aqui! Vou te mostrar essa amiga amanhã. Vocês conversam e veem se sai alguma coisa de futuro. Ao menos sexo.”

Olho para a foto. Olho para a minha amiga.

“Tem certeza de que não é um homem nessa foto?”

IV

“Você não devia fumar.”

É Eduarda, descendo cuidadosamente as escadas para se aproximar de onde eu estou, olhando para a rua deserta e com um cigarro aceso ainda na mão que eu nem sequer fumei, apenas se transformou em cinzas.

“Porque faz mal à saúde?”

“Não, porque faz você morrer e morrer sim é que faz mal à saúde.”

Minha boca se abre para contestar, mas para. Penso que nesse pequenino corpo, Eduarda pode guardar uma grande sabedoria, então arquivo esse curto diálogo para refletir nele depois.

“Por que você não tá brincando com as crianças?”

“Elas não gostam de mim.”

Eduarda abre os braços e gira sobre si mesma, como se fosse uma libélula.

“Como elas não gostam de você? Você parece tão legal.”

“Eu sou legal”

Ela fala isso parando o que estava fazendo, me olhando e abrindo um sorriso enorme. E fala apenas isso. Eu, diante da visão de um sorriso tão iluminado, sincero e verdadeiro, também fico sem palavras.

“A Lili não pode vir, ela tá doente. Ela é minha única amiga.”

Jogo a piúba de cigarro para longe e sorvo o último pingo de bebida em meu copo.

“A Lili é pretinha. Na escola as crianças não gostam muito dela.”

Mais uma vez, a crueldade das crianças. Eduarda fala essas coisas de pé, com as mãos juntas nas costas, o tronco indo para a frente e para trás, ritmicamente, a cabeça encostando na nuca olhando para o céu estrelado.

“Por que elas não gostam da Lili? Porque ela é pretinha?”

“Algumas meninas dizem que ela tem cabelo de vassoura, mas não é verdade. Vassouras são feitas com cabelo de bruxa e Lili tem o nariz muito pequeno pra ser uma bruxa.”

Novas informações. Faço uma nota mental de nunca apresentar a minha vizinha, a dona Matilda, para Eduarda.

“Não sabia que vassouras eram feitas de cabelo de bruxa.”

“Minha mamãe leu pra mim num livro. Sua mãe não lê pra você?”

“Não, minha mãe não pode ler pra mim.”

“Que pena, pois as mães sabem muitas coisas sobre bruxas.”

“O que você sabe sobre bruxas?”

Eduarda senta ao meu lado no batente. Ela suspira longamente, expulsando o ar de seu minúsculo corpo, como um suspiro cansado, de alguém que tem muitos anos. Olha para mim enquanto fala as palavras.

“Bruxas tem muitos poderes” ela diz olhando de lado, mas fixamente para meus olhos, o que me deixa um pouco desconcertado, “como se transformar em criança e ensinar algumas coisas aos adultos.”

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Hemerson Miranda
Hemerson Miranda

Já pensou no dia em que os alienígenas invadirem a terra em busca de vida inteligente e todos nós ficarmos sem smartphones?