Fragmentos

Hemerson Miranda
Hemerson Miranda
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8 min readMar 2, 2022

Fios de fumaça se erguem e serpenteiam por todo o ambiente. Seu aroma é cítrico ou amadeirado. Há uma música alta vinda de todos os cantos, mas não em volume suficiente para abafar os outros ruídos, como conversas, garrafas batendo ou latas de cerveja sendo abertas. Uma pessoa passa ao meu lado e me lança um olhar de soslaio. Sua pele brilhosa de oleosidade desprende o odor de suor curtido em álcool. Essa pessoa passa e me encara. Seus olhos têm cor de mel, mas dá para ver veias vermelhas brotando dos cantos. Essa pessoa passa e me lança um sorriso e seus dentes são amarelados e possuem erosão, mas ainda assim é um sorriso bonito. E essa pessoa desaparece no meio da multidão.

Os aromas na casa misturados com a fumaça são de hálito fermentado, perfume misturado com suor, drinks de xaropes e destilados, cigarro e maconha. A batida alta da música parece ressoar dentro de mim, acompanhando meu coração, como se ele mesmo fosse um tambor constituído de músculos, e minhas fibras vibram com seu compasso.

Encosto em uma bancada da cozinha. Sinto minha respiração ficar quente e descompassada. Ao meu lado, em uma mesa, um grupo de mulheres bebe e conversa. A mulher no centro das atenções tem inúmeras mechas de cabelo coloridas e seus lábios grossos tem uma vermelhidão causada pelo batom que em um primeiro momento você imagina ser sangue; sua boca brilha, como se tivesse acabado de abocanhar algo suculento ou gorduroso. Ela ergue na mão esquerda um copo de conhaque, mas o líquido é vermelho. Ela fala por cima da música alta e as outras mulheres escutam com atenção. A mulher diz com um sorriso de orelha a orelha enquanto dá um gole na bebida:

“Aí ele perguntou se eu queria dar pra ele.”

Essa frase faz as mulheres focarem sua atenção nas palavras dela. A mulher de cabelo iridescente coloca uma das mechas atrás da orelha e, sabendo que mais uma vez conseguiu atrair os olhares e ouvidos, diz:

“Eu fiquei de quatro na frente dele e falei: ‘Se eu quero te dar? Pode me foder até eu desmaiar. E quando eu desmaiar pode continuar me fodendo!”

Nesse momento, gargalhadas explodem no grupo de mulheres. Enquanto umas riem, outras viram shots de bebida alcoólica. A mulher no centro recebe mais bebida em seu copo e sorri, olhando para as outras, até que seu olhar pousa no meu e eu resolvo me mexer e sair dali.

Enquanto caminho, uma mulher se aproxima de mim e me dá um beijo. De língua. São cerca de 10 segundos o tempo que ela aperta minha nuca com força e vasculha toda a minha boca com sua língua. Seu gosto é de vodca. Mas meu nariz nota o creme de morango passado como uma demão em sua pele. A falta de equilíbrio de seu corpo denuncia embriaguez.

Ela faz isso e vai embora. Sumindo entre o meio de pessoas também embriagadas. Da mesma forma que as espirais de fumaça, ela some no ambiente. E me deixa com esse sabor fermentado na boca, uma mistura de vodca e algo mais. E o cheiro de salão de beleza no meu nariz. Com a língua eu também posso sentir que sua saliva possui resíduos de ovo e gordura suína, provavelmente um x-bacon que ela comeu antes de se embriagar, talvez fragmentos de pão e alface tenham sido transferidos de sua boca para a minha.

Grito para a mulher no bar que fica na sala de estar que quero um whisky duplo, sem gelo. Massageio minhas têmporas com o polegar e o indicador enquanto fecho os olhos e ouço o líquido âmbar ser derramado no copo. Impressionante como minha audição seleciona os sons em meio a essa barulheira toda. Dou um gole na bebida e, ao pousar o copo na bancada, sinto uma presença ao meu lado. Uma mulher de cabelos curtos, de cores entre o verde e o azul, e maquiagem tão colorida quanto, se senta no banco ao meu lado e pede uma cerveja. Suas unhas vermelhas e compridas parecem garras tamborilando na superfície de madeira. Sua visão periférica me nota e ela me lança um sorriso torto, sem dentes, apenas o esticar de seus lábios negros.

Sinto o líquido descer pela minha garganta, esquentando meu peito e estômago, subindo uma vermelhidão não visível da pele de meu abdômen, seguindo pelo peito até o rosto. A mulher de cabelos curtos, segurando a garrafa de cerveja, se aproxima mais de mim e toca meu braço, como se isso criasse uma ligação entre nós e sua voz pudesse reverberar pela extensão do meu corpo.

“O que você tá fazendo aqui?”, ela pergunta próxima ao meu ouvido e o ar que sai da sua boca, quente e úmido, atinge meu pescoço.

“Eu não faço ideia”, respondo com a boca próxima à sua orelha perfurada com brincos.

Ela sorri e agora posso observar a fileira de dentes amarelados de cigarro e café. Esse curto diálogo, de alguma forma, inicia uma conversa. Falamos de onde morávamos, se tínhamos amigos em comum aqui, sobre nossos gostos pessoas, etc. De fato, nós dois aqui somos estranhos aos outros. Fomos convidados por pessoas que conhecem outras pessoas só porque nos perguntaram o que faríamos no fim de semana e nossa resposta foi “nada”. Ela deixa de lado as cervejas e passa para as vodcas. Continuo no whisky. De costas para o bar, nós olhamos para as pessoas dançando, rindo e bebendo. Ela acende um cigarro, me oferece e eu nego. Na nossa frente passa uma mulher aparentando meia idade com um decote cujos seios volumosos ameaçam saltar em qualquer pessoa sem aviso prévio.

Na minha orelha, a moça ao meu lado fala:

“Eu tenho uma amiga. Ela sempre teve peitos enormes, desde quando era adolescente. Nos conhecemos há muitos anos, sempre estudamos juntas. Ela aproveitou que seus peitos continuam grandes e agora cobra 100 reais a hora.”

Eu olho para ela, que sorri, mas não expresso reação alguma.

“Não, não é o que você tá pensando”, ela fala e dá mais uma tragada no cigarro. “Ela cobra pra abraçar homens e deixar que eles chorem com a cara enterrada no meio dos peitos dela. Ela me diz que é muito procurada, que eu não faço ideia de quantos homens, já adultos e de meia idade, buscam uma mulher, não pra transar, mas pra derramar suas frustrações.”

Penso nos homens que conheço, na máscara de machões que eles tem que usar diariamente para esconder seus problemas pessoais e não deixar desmoronar o caráter criado por seus pais e por uma sociedade que nunca admitiu que os homens pudessem expressar seus sentimentos.

“Ela diz que eles choram igual crianças, chegam a soluçar, e ela os ouve e os acaricia, faz cafuné e diz coisas confortadoras. Como ela sempre cuidou dos irmãos mais novos, ela sabe bem o que fazer.”

Fico pensando em mim mesmo e procuro em meu interior a existência dessa necessidade e me deparo com um resquício que pode, sim, ser essa dependência de uma mulher na minha vida para eu poder ser consolado. Penso que homens, durante a vida, só vão substituindo suas mães por mulheres que cuidem deles e os consolem quando necessitam.

“Todas as mulheres com seios grandes chamam a atenção e nem sempre tem algum significado sexual”, ela diz e eu, involuntariamente, olho para o volume de seus seios, médios.

“Ok, desculpe”, eu digo, sorrindo e olhando dos seios para ela.

“Tudo bem”, ela responde. O decote de sua blusa é um V que deixa saliente a separação de seus seios.

Nesse momento uma lata de cerveja cheia é lançada por alguém, por acidente ou não, e ela parece um cometa formando um arco sobre as cabeças dos presentes, sua cauda de espuma branca realçada pelas luzes. Isso, unido à história da amiga de seios enormes, me fez lembrar da primeira vez que fiz sexo. Tão nervoso eu estava que assim que me coloquei acima da mulher, ejaculei entre as pernas dela. Ela sorriu, me vendo deitar de lado afogado em frustração. E ela apenas me consolou, como deve consolar essa mulher de seios grandes, dizendo “Não tem problema, ia ser dentro de mim, de todo jeito”.

“O que não se pode esquecer”, ela continuou dizendo “é que você não pode ter preocupação com fluidos corporais. Tipo saliva, suor, esperma, secreção vaginal, sangue, urina, essas coisas. Nós sempre estamos engolindo alguma coisa, pela boca ou não.”

No bar da casa, a moça e eu olhamos a trajetória da lata de cerveja terminar nas costas de um homem, o que provavelmente desencadeará uma confusão. Ela olha para mim e fala e mesmo eu não ouvindo nada, leio em seus lábios ela dizer “Vamos sair daqui?”

Eu faço com a cabeça um exagerado “Com certeza” e nos encaminhamos para a porta da frente.

Aos poucos a música alta vai diminuindo seu volume aqui fora e dentro de mim. É uma noite de verão tranquila, com uma brisa morna que resvala em nossos rostos. Estamos aqui ela e eu sem saber o nome um do outro e esse fato causa uma certa linha limítrofe, que, se ultrapassada, pode ser bastante ruim. Ou ao menos é isso que eu acho. Não sei ela. Mas o corpo dela demonstra conforto, mesmo o visível cansaço que se nota em seus ombros, o que deve fazer parte de seu charme, ela parece animada, apesar de tudo.

Ela acende mais um cigarro e então fala:

“Poxa, mas a gente deveria ter trazido alguma bebida, né?” ela diz batendo a mão espalmada em sua testa.

Com um meio sorriso, olhando para ela, sem saber exatamente o que eu estou fazendo, falo como se as palavras saíssem de mim em um espasmo que não consigo controlar.

“Eu tenho bebida em casa.”

Então me vejo chegando em meu apartamento com essa mulher que nem sei o nome. Dou boa noite ao porteiro, que me lança um sorriso cúmplice, desses que os homens costumam fazer a outros homens quando tem algo sexual envolvido, como um código de predadores.

O que acontece é que nem eu mesmo não estou acreditando que esta mulher está prestes a passar a noite no meu apartamento, muito provavelmente varar a madrugada na minha cama. Apesar de ser bom em conversas e ser bem versátil em grupos, pois meu leque de assuntos é extenso, então eu consigo discutir tranquilamente sobre um reality show ou outras amenidades, como também posso opinar sobre filmes clássicos e lançamentos de livros sobre metafísica, mas ainda assim a minha autoestima não é lá essas coisas. Ao mesmo tempo que meu corpo se prepara para um contato extremamente íntimo com essa mulher, uma voz na minha cabeça martela meu cérebro dizendo que eu não mereço o que está para acontecer. Veja bem, as coisas estão acontecendo diante de meus olhos, mas o meu corpo parece manter o pé no freio como se nada fosse acontecer unicamente porque eu não mereço. Tomé ficaria orgulhoso de mim.

Quando entramos no apartamento, vou logo perguntando se ela quer cerveja ou whisky, mas assim que tranco a porta minhas palavras são engolidas pelo ataque dela. Com fúria ela se agarra a mim, suas mãos me procurando dentro de minhas roupas enquanto eu me perco em sua boca e em seus amassos. Cada um auxilia o outro a tirar as próprias roupas enquanto caminhamos até o quarto. Há essa seriedade sobre o ato que estamos prestes a fazer e esses sorrisos expirados na boca um do outro devido aos movimentos atrapalhados por estarmos ligeiramente embriagados.

O interior da boca dela é uma caverna que secreta um blend de destilados, resquícios de um chiclete de canela e o amargor de café. Sua pele tem a maciez cremosa dos hidratantes que sempre usa antes de dormir e seu cheiro é o aroma residual do adocicado azedo de quem acabou de acordar.

Quando deitamos na cama, uma fome toma a nós dois e fazemos sexo como se fosse a última coisa que faríamos neste mundo, um amálgama de pele e mucosas, suor e saliva, dedos deslizando e mãos apertando, como duas bestas se devorando, até a exaustão bater, até parecer que ambos ejaculamos e expelimos até as almas.

Na manhã seguinte acordo e não a encontro ao meu lado.

Porque na verdade ela nunca esteve aqui.

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Hemerson Miranda
Hemerson Miranda

Já pensou no dia em que os alienígenas invadirem a terra em busca de vida inteligente e todos nós ficarmos sem smartphones?